O leitor certamente já viu alguma celebridade de Hollywood criticando a anexação do Tibete pela China, mas essa celebridade explicou o motivo da presença chinesa ali? Não se trata de aceitar ou condenar, muito menos de forma acrítica. O ponto é que é necessário compreender um evento antes do julgamento de valor. No caso tibetano, o julgamento costuma ser bem fácil, dada uma soma complexa: o carisma e atitude pacífica do líder espiritual tibetano, o Dalai Lama, mais o apoio de inúmeras celebridades, mais a antipatia proporcionada pelos fatos da China ser um governo autoritário, até recentemente fechado, e que ainda cutuca os fantasmas do anticomunismo. Em uma semana em que o levante tibetano faz 60 anos, é uma oportunidade interessante para compreender quais os interesses chineses em anexar o Tibete.
A palavra chave é “interesse”. As coisas não funcionam como em um tabuleiro de jogo de estratégia. Na vida real, dominar uma população de três milhões de pessoas, de uma etnia diferente, em uma área de um milhão e duzentos mil quilômetros quadrados implica custos: militares, econômicos e políticos. A atual Região Autônoma do Tibete é a segunda maior região administrativa da China, embora esparsamente habitada, dadas as condições geográficas. Se fosse por apenas um plano maquiavélico expansionista, seria muito mais fácil dominar países como Butão. É necessário que os custos envolvidos sejam menores do que os espólios da conquista.
A ideologia por trás da anexação do Tibete
A China passou por uma série de humilhações no século XIX e início do século XX. As guerras do ópio, crises internas, a virtual escravidão de centenas de milhares de seus nacionais pelo mundo. A dinastia Qing, que governou entre 1644 e 1912, controlava um dos maiores impérios já registrados. Teve que fazer concessões aos europeus, como Hong Kong, cedida aos britânicos até 1997, e a Manchúria Exterior, até hoje sob posse russa. A famosa Vladivostok, “Senhora do Leste”, era Haishenwai até 1860. Perdeu a Mongólia e regiões nos confins do império foram para outras órbitas, origem das disputas territoriais contemporâneas com indianos e cazaques, além da posse do Mar do Sul da China.
Parte do império Qing era a região do Tibete que, entre as invasões mongóis e a dinastia Qing, foi governo pelos Dalai Lama entre os séculos XVII e XVIII; a região, entretanto, era domínio chinês desde a dinastia Yuan, no século XIII. Em 1720, o Tibete tornou-se uma posse indivisível chinesa, com a autoridade espiritual local do Dalai Lama reconhecida pelo império. O Tibete retomou sua independência em 1912, em meio à guerra civil chinesa e a revolução que que instaurou uma república. Para o governo chinês, essa independência foi fruto desse momento de crise, consequência das humilhações sofridas por um império fraco. Além disso, seria dever nacional, justificado, retomar as antigas posses chinesas.
Após a derrubada do imperador Puyi, o país viveu um período de intensos conflitos internos, com senhores da guerra controlando porções da China até serem derrotados pelo governo central. Além disso, a guerra civil entre nacionalistas do Kuomintang e comunistas dividiu o país até 1949, com uma breve pausa para o “fronte unificado” contra o inimigo japonês em comum. Logo após o fim da Guerra Civil, a República Popular da China, a China continental ou comunista, invade o Tibete de fato independente, como uma monarquia absolutista teocrática budista, com aspectos feudais. Em meses o pequeno exército tibetano é derrotado e o governo do Dalai Lama é obrigado a aceitar a autoridade de Pequim no acordo de Dezessete Pontos.
Essa é a justificativa ideológica da anexação do Tibete. Ele seria uma posse histórica chinesa, que foi “apenas” retomada. Claro, para os tibetanos e os partidários de sua independência, o país era independente após a queda da dinastia Qing, em 1912. Tinha autonomia e governo e leis próprios, liderado pelo Dalai Lama. Por ser considerado independente, ele teria tido sua soberania violada de forma ilegal com a invasão chinesa. A posição chinesa, entretanto, não muda. Em suma, antigos territórios do império chinês devem fazer parte da atual China. E sim, isso coloca China e Rússia em rota de colisão no médio e longo prazo, como já estiveram décadas atrás; ao contrário do que a visão ideológica pode apontar, chineses e soviéticos não eram os melhores amigos do mundo depois da década de 1960, na Guerra Fria.
A geopolítica por trás da anexação do Tibete
Além da questão histórica e do orgulho nacional, existem outros motivos para a importância da posse do Tibete. Pela região ser um platô muito alto que liga as planícies chinesas, a Ásia central e o subcontinente indiano, o Tibete é uma importante região estratégica. Desde a Antiguidade, várias rotas comerciais passam pela região, e o Tibete foi invadido e disputado na História por mongóis, nepaleses, indianos, russos e britânicos. Não se trata apenas de ter uma face da maior montanha do mundo, a posse chinesa do Tibete permite uma projeção de força e de interesses econômicos por uma vasta região.
Por exemplo, sem o Tibete, as ligações ferroviárias entre a China e os portos paquistaneses não seria possível. Isso para ficarmos apenas no exemplo desse corredor comercial. Na parte militar, a presença chinesa envolve importantes e modernas bases aéreas e também de mísseis balísticos. O platô tibetano é um dos berços do programa nuclear chinês, com algumas das primeiras detonações do país realizadas ali, dado o isolamento e a baixa densidade demográfica. Ali estão bases aéreas onde a China testa a capacidade operacional de seus novos aviões, algo parecido com o papel de Nevada para os EUA.
Principalmente, é no platô tibetano onde nascem os maiores rios da Ásia, essenciais para o abastecimento de água e geração de energia hidrelétrica da China. Os rios Yangtze, terceiro mais extenso do mundo, e Amarelo, sexto mais extenso do mundo, ambos correndo inteiramente dentro de terras chinesas. Além disso, é no Tibete que nascem os rios Mekong, vital para os países do sudeste asiático e imortalizado em filmes sobre a guerra do Vietnã, e o rio Indo, um dos berços da civilização humana e essencial para Paquistão e Índia. E não se trata de lista geográfica para ser decorada junto com os afluentes do Amazonas, mas de mostra da importância do Tibete.
Controlar a nascente de um rio é controlar sua água. É um recurso estratégico, econômico e militar. Exemplo talvez mais vivo é a necessidade israelense de controlar o mar da Galileia e as colinas de Golã, impedindo o acesso sírio na nascente do único rio do país. Das cinco maiores hidrelétricas chinesas, quatro estão nas bacias desses rios que nascem no Tibete, incluindo a maior usina hidrelétrica do mundo, a de Três Gargantas, concluída em 2012 e que pode gerar a energia equivalente de uma Itaipu e meia. Além disso, ao contrário dos rios e lagos costeiros, próximos das grandes cidades poluentes, os rios perto de suas fontes são mais limpos e podem servir de fonte para o sistema de abastecimento de água da maior população do mundo.
Novamente, não se trata de justificar ou amenizar a anexação do Tibete. Existe um conflito de narrativas. De um lado, os tibetanos constituem um povo próprio e sofreram uma série de repressões nas mãos do governo de Pequim; do outro, eram uma posse histórica chinesa e diversas lideranças tibetanas ostensivamente cooperaram com a inteligência dos EUA durante a Guerra Fria. Trata-se de compreender os contextos e interesses envolvidos; no caso, do lado chinês, além dos conhecidos aspectos tibetanos. Conhecendo a importância geopolítica do Tibete, é improvável que os chineses abram mão desse território em um futuro próximo.