Destruição causada por grande explosão no porto de Beirute| Foto: STR/AFP| Foto:
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A assustadora explosão no porto de Beirute essa semana foi resultado de uma desconhecida bomba-relógio, armada por anos de crise. No último dia 4, 2.750 toneladas de nitrato de amônia explodiram como consequência de um incêndio em um galpão vizinho ao local onde o material era guardado desde setembro de 2013. Mais do que um acidente, o que aconteceu em Beirute é também fruto da disputa por influência no Oriente Médio, que solapa e enfraquece países da região.

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Originalmente, o tema da coluna de hoje seria a eleição em Belarus, nesse próximo final de semana, marcada por questões nacionalistas e pelo contraste entre setores pró-Rússia e setores pró-União Europeia. A trágica explosão em Beirute causou uma mudança de planos e deixou ao menos 157 pessoas mortas, com outras oitenta desaparecidas. Cinco mil pessoas ficaram feridas e entre 200 mil e 300 mil pessoas estão desabrigadas. O raio de destruição foi de mais de três quilômetros.

Economia e guerra

Além das vidas e residências destruídas por uma das maiores explosões não-nucleares já registradas, os danos econômicos são calculados em cerca de quinze bilhões de dólares. Colocando em perspectiva, trata-se de um quarto do PIB libanês, em um país cada vez mais endividado e passando por uma profunda crise de divisas e de inflação. A crise econômica é agravada pela crise, e pela guerra, na vizinha Síria, pela pandemia do novo coronavírus e o desemprego chega à 25% da população economicamente ativa.

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A desvalorização da libra libanesa possui efeito ainda mais grave, já que o país importa muito mais do que exporta, com um déficit comercial de cerca de quinze bilhões de dólares. É também importante desvincular o Líbano, e toda a região, na verdade, do clichê de “Oriente Médio sempre foi assim” ou “não há solução”. Na verdade, esse é um período tristemente excepcional na História do país, iniciado na década de 1970, com a crise que culmina no início da guerra civil, em 1975.

Beirute era chamada de “Paris do Mediterrâneo” e, na década de 1960, praticamente todos os índices socioeconômicos do país eram melhores do que os do Brasil. As guerras com Israel e o constante fluxo de refugiados palestinos para o Líbano geram uma crise humanitária no país. Também afetam o equilíbrio populacional, que é diverso e rico do ponto de vista religioso e demográfico, com cristãos de diferentes orientações, muçulmanos xiitas e sunitas, e diversos grupos étnicos.

A guerra civil destruiu o Líbano. Não apenas sua infraestrutura e suas cidades, mas também sua sociedade, com massacres étnicos durante a guerra. O conflito não era entre dois grupos, mas entre quatro, com alianças de ocasião. Cristãos, pan-árabes, palestinos, nacionalistas e xiitas. As potências regionais quase todas entraram no conflito. No primeiro momento, já em 1976, a Síria interveio no conflito, em apoio aos pan-árabes e aos xiitas. Em 1978 foi criada a UNIFIL, missão da ONU patrocinada por EUA e França.

A UNIFIL foi criada para apoiar o governo nacional libanês, na esperança de que o conflito pudesse ser resolvido em breve, e também recebeu apoio saudita, interessados em conter os movimentos pan-árabes e apoiar sunitas islamistas. Temendo a expansão da influência de Damasco e uma vitória palestina, Israel interveio no conflito em 1982, com o apoio de milícias cristãs. Isso motivou a criação da milícia xiita Hezbollah, em 1985, com apoio iraniano, já consolidado pós-revolução de 1979.

Acordo?

Oficialmente a guerra acabou em 1990, com um novo acordo político que dividiu as funções do Estado libanês de acordo com a demografia. Por lei, o presidente é cristão maronita, o premiê é sunita e o presidente da câmara é xiita, e os vices são cristãos ortodoxos. São dezoito grupos reconhecidos e com direitos à funções específicas dentro do Estado libanês.

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Por um lado, o acordo acabou com uma guerra aberta no país. As tropas israelenses se retiram em 2000 e, em 2006, termina a retirada síria. Por outro lado, o acordo favoreceu a inescrupulosa busca da ampliação da influência de cada grupo e de cada potência regional. Assassinatos de políticos, a existência de diversas milícias e, atualmente, o Hezbollah é praticamente um Estado dentro do Estado, um partido político com braço armado, apoio internacional iraniano e controle de parte da economia. Do outro lado, os sauditas, financiando a compra de equipamento pelas forças armadas nacionais e mantendo forte influência na política libanesa.

Talvez o exemplo mais visível disso seja a família Hariri. O sunita Rafic Hariri, que tinha dupla nacionalidade libanesa e saudita, foi premiê do país entre 1992 e 1998 e novamente de 2000 a 2004. No ano seguinte ele foi assassinado, possivelmente pelo Hezbollah ou pela Síria. Seu filho, Saad Hariri, nascido na Arábia Saudita, foi premiê entre 2009 a 2011 e novamente de 2016 a 2020, totalizando quase dezesseis anos da família no poder. E, em 2017, no poder, foi praticamente raptado pelos sauditas.

Numa transmissão de Riade, Saad Hariri estranhamente renunciou ao governo do Líbano, e os sauditas ameaçaram o início de uma guerra. Provavelmente ele foi coagido pelos sauditas, um pretexto para uma guerra não com o Líbano, mas com o Hezbollah. Com mediação francesa, a renúncia foi anulada e Hariri retornou ao governo, onde ficou até o início do ano. Esse episódio é um ótimo exemplo de como o Líbano é mais um tabuleiro olhado pelas potências regionais.

Ter o Hezbollah e o Irã como inimigo comum é algo, inclusive, que tem aproximado os países do golfo e Israel, como visto na série de textos de introdução ao Oriente Médio. A questão principal aqui é: a guerra aberta acabou, mas o Líbano não possui paz e estabilidade contínuas. São períodos de crise que se alternam com períodos estáveis, mas uma crise está sempre no horizonte. Da Revolução do Cedro em 2005, passando por conflitos locais, crises do lixo e reflexos da guerra civil na vizinha Síria.

O resultado é que, quando um cargueiro com carga perigosa de bandeira moldava é apreendido pelas autoridades portuárias, sua carga fica seis anos estocada de maneira precária. Não se trata apenas de displicência, mas também da falta de um aparato de Estado constituído, capaz e presente. Autoridades portuárias emitiram pedidos para a tomada de providências, apresentando opções, mas caíram em ouvidos moucos. Resume-se em: “Estado? Que Estado?!”

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Próxima bomba-relógio

Essas foram as palavras de Melissa Fadlallah, uma voluntária para a limpeza das ruas de Beirute, cuja entrevista para a Agência France Presse foi amplamente reproduzida. A explosão em Beirute não foi mera tragédia, um evento imprevisível ou fruto de uma raríssima combinação de eventos. É também o produto de décadas de uma crise institucional que é causada e explorada pelos vizinhos interessados em usar o Líbano de acordo com suas agendas regionais.

O que leva ao lembrete e alerta de outra bomba-relógio armada por uma crise de um Estado, hoje, virtualmente inexistente, em crise muito mais profunda do que o Líbano. O navio-tanque FSO Safer está ancorado na costa do Iêmen desde 1988, usado para armazenar petróleo extraído no país. Desde 2015, com o início da guerra civil impulsionada pelos sauditas, o navio está sem manutenção e foi alvo de disputas entre rebeldes e o governo de Saná.

Com sua carga de mais de um milhão de barris de petróleo, o navio é uma bomba-relógio ambiental e também econômica, já que está no mar Vermelho, na rota do canal de Suez. Caso ocorra o vazamento de sua carga, muita gente vai se lamentar e achar uma tragédia, como agora no Líbano, mas, em nenhum dos dois eventos, deve-se perder de vista o motivo dos acontecimentos. Crise política, falência estatal e consequência das disputas regionais, entre sauditas e iranianos.