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A guerra civil do Iêmen ganhou um novo desdobramento nessa última semana. O Conselho de Transição do Sul (STC, na sigla em inglês) proclamou “autonomia” do território sob seu controle. Supostamente, o grupo conta com o apoio de governadores locais e, principalmente, controla a cidade portuária de Aden. O ato é mais um capítulo do conflito que se arrasta desde 2011, intensificado em 2015 com a intervenção de países do golfo Pérsico. A proclamação possibilita uma implicação histórica e duas geopolíticas que são interessantes de se manter à vista.
O STC é um dos grupos que apoia o governo internacionalmente reconhecido de Abdrabbuh Mansur Hadi na guerra civil. Esse apoio é dividido em dois eixos principais. O do governo, capitaneado pelo que seria o exército regular iemenita, e o do Sul, formado pelo citado STC e por outros grupos, com destaque para a milícia de Tareq Saleh, sobrinho do ex-ditador Ali Abdullah Saleh, morto em 2017. Contra o governo estão os grupos xiitas houthis, com apoio de dissidentes do exército nacional e grupos nacionalistas pan-árabes, algo por vezes chamado de socialismo árabe.
Até o final de 2018, o apoio ao governo era razoavelmente concertado, embora fragmentado. Desde então a clivagem entre os dois eixos se aprofundou, com o desgaste do arrastar do conflito. Um dos motivos é o fato de que o STC não aceita ombrear-se com o grupo Islah, um amontoado de representações de chefes locais com caráter salafista e afiliado à Irmandade Muçulmana. Para muitos, um grupo jihadista. Outro motivo é o fato de que o governo Hadi está disposto à fazer alguma espécie de acordo que acabe com a guerra; o STC não aceita uma paz negociada, apenas a vitória.
Sauditas e emiradenses
O que parece mais uma disputa regional, na verdade, significa uma distensão entre dois fortes aliados regionais, a primeira implicação geopolítica da proclamação de autonomia. O governo Hadi é apoiado diretamente pela Arábia Saudita, incluindo inúmeros bombardeios aéreos com vítimas civis que repercutiram pelo mundo. Já o STC é apoiado pelos Emirados Árabes Unidos (EAU) e, nos últimos meses, sauditas e emiradenses estão progressivamente se distanciando como consequência das diferenças entre seus aliados. E também porque Riade e Abu Dhabi possuem agendas próprias.
Os sauditas desejam manter o Iêmen sob sua influência e impedir problemas na sua fronteira sul. Já os emiradenses buscam expandir sua presença para além de suas fronteiras, concretizando suas ambições de se tornar uma potência regional. E qual a relação com o Iêmen, alguém pode se perguntar. O golfo de Aden é um dos principais gargalos marítimos do mundo. Por ali passam mais de vinte mil navios por ano, transitando pelo canal de Suez. Não é uma coincidência a atividade de pirataria na Somália, nem o fato da primeira base chinesa fora do Pacífico ter sido construída no Djibouti.
Para os EAU, estabelecer influência numa rota que é, inclusive, importante para suas próprias exportações de petróleo, seria algo inédito. Um “cartão de visitas” de um país que, até algumas décadas atrás, tinha pouquíssimo peso nas relações internacionais. Sendo sauditas e emiradenses aliados, então, as duas agendas não necessariamente se excluem. O problema é quando os aliados internos se distanciam, como é o caso. Abu Dhabi não vai abrir mão de seu ambicioso plano apenas para não correr o risco de magoar seus aliados sauditas. E os sauditas querem sair o mais rápido possível desse atoleiro.
Divisão histórica
Entra na equação uma questão histórica. O Iêmen como conhecemos hoje foi formado em 1990. Por séculos, o Iêmen, assim como a maior parte do Oriente Médio, foi uma posse do império Otomano, com um intervalo. Nos séculos XVII e XVIII, a região do Iêmen foi dominada por uma dinastia xiita, os zaidis, que estabeleceram firmes relações com a Pérsia. É nesse período que o Iêmen “entra no mapa” mundial por causa de um grão revigorante chamado café, do árabe quahwah, “vigor”. Os otomanos recuperam a região e, no século XIX, o Iêmen entrou na esfera de influência britânica.
Como em muitas regiões de seu império, os britânicos dividiram o Iêmen em dois. Ao sul, o satélite sultanato de Lahej, sunita, posteriormente formalizado como colônia, o Protetorado de Aden em 1872, governado diretamente pelos britânicos por sua importantíssima localização; não à toa, é o período da construção do canal de Suez. O norte, menos importante, ficou em mãos otomanas até a Primeira Guerra Mundial, quando se torna o Reino do Iêmen, governado pelos xiitas zaidis. Ou seja, o norte e o sul do Iêmen ficaram, por mais de um século, submetidos a sistemas totalmente distintos de governo.
Em outra reflexão, é possível dizer que, antes de 1990, a última vez que o Iêmen teve um governo unificado e independente foi ainda no final do século XVIII. No século XX, a Guerra Fria também chega ao Iêmen, e torna as coisas ainda mais confusas. Ao norte foi formada a islamista República Árabe do Iêmen, com apoio saudita, embora a maioria da população seja xiita. Ao sul, a República Popular do Iêmen, de caráter socialista, com apoio soviético e maioria da população sunita. Em 1990 chega-se num acordo e as duas repúblicas são unificadas.
O inimigo mora ao lado
A razão dessa recapitulação histórica é para mostrar que, em 2020, o cenário está se repetindo, inclusive em fronteiras muito similares. Uma divisão do Iêmen em duas partes, uma xiita e outra sunita, com forças islamistas e socialistas seculares lutando entre si, e com a monarquia saudita apoiando, em maior ou menor grau, os primeiros. E o principal butim dessa disputa é o porto de Aden, daí o alarme quando uma facção como o STC declara “autonomia” enquanto controla a cidade. É possível que o Iêmen seja novamente dividido, e isso não necessariamente é ruim.
Resta uma questão. Os sauditas jamais aceitarão essa divisão, na prática, no que compreende a segunda implicação geopolítica dessa declaração. Uma fragmentação do Iêmen significa um eventual “Iêmen do Norte” xiita e aliado do Irã em sua fronteira, uma ameaça inaceitável. Foi das regiões houthis que o Irã disparou mísseis contra território saudita, na “guerra fria” entre as duas potências regionais, tema de diversos textos aqui nesse espaço. Com as devidas proporções, seria como uma base soviética na Baja Califórnia mexicana durante a Guerra Fria.
Por isso que os sauditas querem encerrar logo a guerra, com um acordo que seja, para evitar um esgarçamento ainda maior do tecido social e estatal iemenita; se é que isso é possível. Não querem uma região autônoma pró-Irã na sua vizinhança. Ao mesmo tempo, essa solução rápida e remendada não satisfaz os Emirados Árabes Unidos, que desejam aumentar sua presença ali. No fim das contas, o prolongar do conflito e a dissolução da sociedade iemenita está fortalecendo cada vez mais as antigas identidades do país. Mais precisamente, de quando ele não era um país.