A virada de sexta-feira para sábado foi um dia tenso na Rússia. Por cerca de um dia, o país enfrentou um motim do Grupo Wagner, exército privado que serve de braço extraoficial de instituições russas, como o exército e a presidência. Alguns mais alarmistas foram rápidos em declarar que se tratava de um golpe ou, pior, do início de uma guerra civil, mas não passou de um motim militar. Ainda assim, um evento delicado, que merece atenção e, principalmente, abre algumas possibilidades para o futuro próximo.
O Grupo Wagner é atualmente chefiado por Yevgeny Prigozhin. Dizer que Prigozhin é aliado de Putin é pouco, Putin o “criou”. Prigozhin foi de presidiário e trabalhador em bicos para um milionário fornecedor de serviços gastronômicos para o Kremlin, por vezes chamado de “chef de Putin”. Embora Prigozhin seja o administrador e, hoje, principal rosto do grupo, o fundador operacional da milícia foi o coronel Dmitry Utkin, ex-forças especiais russas. O paradeiro de Utkin é atualmente desconhecido.
Ele era, ou é, simpatizante do nazismo. Seu codinome operacional era “Wagner”, nome do grupo e que homenageia Richard Wagner, o “compositor favorito de Hitler”. O compositor romântico morreu décadas antes da criação do partido nazista, mas até hoje sua imagem é indissociável do admirador que governou a Alemanha nazista. Até recentemente, o Grupo Wagner estava desempenhando um papel importante na guerra da Ucrânia, por diversos motivos, como a presença de ex-oficiais em suas fileiras.
O Grupo Wagner, hoje, remunera muito melhor do que as forças armadas russas regulares, embora não conte com os mesmos privilégios de carreira. Outras funções importantes do grupo eram as logísticas e jurídicas, facilitando, por exemplo, o serviço militar de criminosos condenados. Basta a assinatura de um contrato e pronto. Meses atrás, um recrutador do Grupo Wagner foi gravado dizendo que, caso o interessado servisse na África, ele teria um bônus menor, mas “gastaria ele mesmo” o dinheiro.
Crise entre Grupo Wagner e o exército
Caso o serviço fosse na Ucrânia, o bônus seria maior, mas “seus familiares é que vão gastar”. Isso permitiu uma grande mobilização de combate para o Grupo Wagner, possibilitando triunfos militares como a tomada de Bakhmut, o principal moedor de carne da guerra na Ucrânia. Nos últimos meses, o Grupo Wagner e as forças armadas russas passaram a ter diversos atritos: o Grupo Wagner reclamava de falta de munição e de negligência pelo comando do exército russo.
Principalmente, integrantes do Grupo Wagner, que se chamam de "músicos", trocaram tiros com forças regulares russas e teriam sofrido um ataque aéreo em uma de suas bases. A gota d'água do azedar da relação veio duas semanas atrás, quando o Ministério da Defesa russo ordenou que todas as forças na Ucrânia ficassem legalmente subordinadas ao ministério, incluindo forças de repúblicas autônomas, como os chechenos, e o Grupo Wagner. A Chechênia aceitou a nova regra, o Grupo Wagner não.
O motim começou na sexta-feira, segundo Prigozhin, para evitar “o fim do grupo”. Ele exigiu as demissões de Sergei Shoigu, ministro da Defesa, e do general Valery Gerasimov, chefe do Estado-Maior conjunto da Rússia, ambos supostamente responsáveis pelas crises dos últimos meses. Prigozhin frequentemente se refere a Shoigu por termos racistas, devido à origem parcialmente tuvana do ministro, um povo túrquico siberiano. Tais exigências do Grupo Wagner eram inaceitáveis.
Aceitar tais exigências seria o fim da autoridade de Vladimir Putin, ao fazer uma concessão sob o cano de uma arma. Shoigu é homem de confiança de Putin e extremamente leal. Ele assumiu o cargo em 2012, sucedendo Anatoly Serdyukov, que caiu após mexer em vespeiros sobre corrupção no exército. Principalmente, Serdyukov estava se tornando muito popular após a vitória na guerra contra a Geórgia, em 2008, e também devido ao impacto positivo na opinião pública de suas reformas. Shoigu não é uma ameaça a Putin.
Passo maior que a perna
O general Gerasimov, por outro lado, chefia a principal instituição do establishment russo, o exército. Ou seja, Prigozhin comprou uma briga que sabia que não ganharia, com um homem de confiança de Putin e com o comandante do exército. Uma conclusão possível é que Prigozhin deu um passo maior que a perna. Outra possibilidade é que ele tenha agido acreditando que teria o apoio de Putin, ou que agia pelos interesses de Putin, o que seria indício de uma disputa interna ainda pouco conhecida do público.
O componente militar do motim ainda não pode ser totalmente compreendido e é importante tomar cuidado com informações soltas ou afirmações incisivas. Notícias de que guarnições russas não combateram integrantes do Grupo Wagner não necessariamente querem dizer que tais guarnições se juntaram ao grupo ou apoiaram o motim, apenas que não queriam morrer à toa. Existem também relatos de que nem todos os integrantes do Wagner apoiaram o motim de Prigozhin.
O chefe do grupo é uma mistura de empresário com político e mafioso, não um líder militar. O que foi visualmente confirmado sobre o motim foi o abate de seis helicópteros russos e um avião de comando. Três dos helicópteros eram de monitoramento eletrônico. Além de serem equipamentos caros, esses equipamentos requerem tripulantes que exigem muito treinamento, com um prejuízo considerável. Ao menos 13 militares russos morreram, além de dois integrantes do Grupo Wagner.
O motim ocupou algumas cidades, como Rostov, no rio Don, e uma coluna de mercenários partiu rumo a Moscou, sem muita resistência. Putin fez um discurso televisionado, chamando o motim de traição e afirmando que medidas duras seriam tomadas. Comentar que Shoigu é uma figura leal e que Putin chamou Prigozhin de traidor não é trivial. A lealdade é a maior qualidade de uma pessoa, segundo o próprio Putin, que não aceitou falar com o “traidor” Prigozhin. Quem negociou pelo governo russo foi Nikolai Patrushev, conselheiro de Putin.
Prigozhin e o comando do Grupo Wagner sabiam que seria suicídio insistir. Gerasimov tem o exército e Putin tem os serviços de inteligência. O Grupo Wagner poderia causar mortes e destruição em sua marcha até Moscou, mas não conseguiria seus objetivos. Além disso, um eventual golpe contra Putin, além de improvável, não teria apoio internacional, por mais chocante que seja escrever isso. Os EUA e a Ucrânia querem a Rússia enfraquecida, mas ninguém quer o caos reinando no país com o maior arsenal nuclear do mundo.
Acordo
Alexander Lukashenko, ditador de Belarus, se tornou o rosto público do acordo costurado por Patrushev. Prigozhin foi para Belarus e os integrantes do Grupo Wagner terão três possibilidades: a incorporação ao Ministério da Defesa, um exílio temporário em Belarus ou a prisão. Algumas pessoas especularam que tudo teria sido orquestrado por Putin, mas não existem indícios disso, especialmente após seu discurso em vídeo e as escaramuças que ocorreram durante o avanço do Grupo Wagner.
Tudo teria sido uma manobra para o Grupo Wagner seguir para Belarus e, de lá, invadir a Ucrânia? A Ucrânia já foi invadida pelo norte, no início da guerra, e, hoje, a ameaça de um novo front é mais valiosa em manter o alerta das tropas ucranianas do que a abertura concreta do novo front. Além disso, considerando que o grupo agora será comandado pelo Ministério da Defesa, essa operação fica ainda mais improvável. Claro, não se trata de uma impossibilidade.
Existem também relatos de que a inteligência russa, controlada por Putin, ameaçou as famílias dos líderes do Grupo Wagner. Se isso aconteceu, obviamente não será tornado público, ao menos não tão cedo. Finalmente, a questão de ouro é se o grupo Wagner poderia ter tomado Moscou. Também improvável, especialmente pelo fato de que não sabemos como seria o uso da força aérea contra o grupo e como seria o comportamento das forças que fazem a guarnição da capital.
Alguns outros pontos merecem análise. Primeiro, Putin não pode simplesmente extinguir o grupo, especialmente pela importância do Grupo Wagner na política externa russa. Hoje, o grupo está presente no Sudão, na República Centro-Africana, na República Democrática do Congo e no Mali. É ator da atual guerra no Sudão, inclusive, tema de coluna recente aqui em nosso espaço. Segundo, mercenários não são confiáveis politicamente, já avisou Maquiavel, mas não são suicidas. Uma nova escalada é improvável.
Putin
A imagem de Putin saiu abalada, tanto internacional quanto domesticamente. Na prática, entretanto, o comando dele do aparato de Estado não esteve ameaçado. Ele deve focar nos abundantes problemas militares da Rússia no futuro próximo, para evitar mais problemas internos e mais prejuízos à sua imagem. Nesse sentido, se Shoigu cair num futuro próximo, usarão justificativas como “corrupção”, o que costuma ser o modus operandi das trocas ministeriais. Um cargo discreto também será bem-vindo.
Principalmente, dois aspectos precisam ser destacados. Primeiro, se a contraofensiva ucraniana conseguirá resultados nos próximos dias. Sucessos ucranianos fortalecerão o Grupo Wagner, que poderá ser visto como indispensável no front. Caso os ucranianos sejam detidos, é Gerasimov e seu exército que saem por cima. Segundo, Prigozhin provavelmente será juridicamente perdoado, mas isso pouco significa. Ele foi chamado de traidor por Putin para todos assistirem.
Impunidade faria Putin parecer enfraquecido. Quem também foi chamado de traidor por Putin? Alexander Litvinenko, de destino conhecido. Prigozhin, no mínimo, deixará de existir politicamente. Ainda há muito o que se revelar sobre o último final de semana na Rússia, e as perguntas despertadas por esse episódio devem perdurar por algum tempo. No longo prazo, pode ser sido um dos primeiros embates entre os possíveis, ao menos em teoria, sucessores de Vladimir Putin no poder.
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