Ministro do Interior da Itália e vice-primeiro ministro, Matteo Salvini| Foto: ELIANO IMPERATO/AFP

A Itália possui três primeiros-ministros ao mesmo tempo que não possui nenhum. Em teoria, o dono da cadeira é Giuseppe Conte, um jurista sem filiação partidária, que ocupa o posto como resultado de um acordo entre os dois partidos que compõem o governo. O líder do maior partido do parlamento, o Movimento Cinco Estrelas (conhecido pela sigla M5S), é Luigi Di Maio, Ministro do Desenvolvimento Econômico, Social e do Trabalho e um dos dois vice-premiês. O outro é Matteo Salvini, líder da Lega Nord (rebatizada de Lega) e Ministro do Interior. Na prática, os três estão em sintonias diferentes.

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Coalizão italiana

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Di Maio foi o vencedor das eleições; porém, como em muitas ocasiões em eleições parlamentares, ele venceu, mas não levou. Sua maior bancada não era suficiente para formar um governo, sobrando duas opções. À esquerda, o Partido Democrático. À direita, a Lega Nord. Como o M5S possuía a retórica de ser um partido renovador, contra figuras políticas tradicionais, não pegaria bem se aliar ao partido que estava até aquele momento no poder, com Matteo Renzi. Restou uma difícil negociação com Salvini, em que nenhum dos dois aceitou abrir mão do cargo de primeiro-ministro para o outro.

Coube a solução de uma figura apartidária, embora extremamente fraca. Conte, em tese, é o chefe do governo, com os dois líderes partidários como seus ministros. No mundo real, ambos disputam o protagonismo e pouco sobra de autoridade para Conte. Essa disputa por protagonismo, primeiro, causou um crescente choque de egos entre os dois líderes partidários, que possuem estilos diferentes. Di Maio adota uma postura mais discreta, com alfinetadas contra Salvini em suas falas, enquanto usa tons apaziguadores em relação aos alvos da língua do líder populista da Lega.

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Já Salvini adota o estilo homem do povo, que “fala o que pensa”, como Trump e Bolsonaro; não à toa, Salvini já recebeu Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro. Mesmo após a formação do governo, nunca deixou de estar em campanha. Conteúdos bombásticos nas redes sociais, aparições públicas, bravatas sobre o euro, falando grosso contra imigração e questões culturais. Mesmo nas férias parlamentares das últimas semanas, Salvini esteve nas praias e nas praças, fazendo “corpo a corpo” com o eleitorado. Até atacou de DJ em um festival, sem camisa e de shorts.

Não se trata apenas da diferença de estilo. Ambos possuem uma diferença programática fundamental. O M5S é pró-União Europeia, o Lega Nord é eurocético, flertando com um discurso anti-UE. Dessa divergência originam uma série de discordâncias entre os dois partidos. Ambos são favoráveis à políticas sociais, como o “bolsa família” italiano. Para isso, a Lega está disposta a gastar mais do que o país arrecada, prevendo ganhos futuros; o M5S não, defensor da manutenção de políticas fiscais alinhadas com as da UE. Outra discordância é o pilar do discurso de Salvini, a postura anti-imigração e anti-refugiados.

Divórcio

Enquanto Salvini barra navios que resgatam pessoas no mar Mediterrâneo de atracarem em portos italianos, Di Maio defende uma solução coletiva, em negociação com a UE e suas lideranças, como Merkel e Macron. Nesse caso, o choque acaba sendo institucional. Salvini é o Ministro do Interior, controla a polícia e essas políticas são de sua alçada. Ao mesmo tempo, o líder da Lega busca que outros órgãos do governo se conformem à sua política, o que não acontece. Recentemente, ele e o ministro da Defesa entraram em rota de colisão, já que Salvini queria usar a marinha italiana para sua política, algo fora de sua autoridade.

Ao ponto que Salvini disse que o governo não andava mais, que as diferenças estavam irreconciliáveis, que era necessário um divórcio. Mais que isso, novas eleições. Salvini sabe que ganhou popularidade nos últimos meses, ao contrário do discreto Di Maio. Sua Lega provavelmente seria a maior bancada, e poderia fazer coalizões de direita com o Forza Itália, de Berlusconi, e com o Fratelli d'Italia (FdI), partido com ligações com movimentos fascistas italianos. Para infelicidade de Salvini, seu voto de desconfiança foi derrotado no Senado italiano, e transformado em uma convocação de Conte para prestar contas.

Os mais apressados já queriam que Salvini renunciasse; primeiro, para reafirmar seu desejo de encerrar o atual governo. Segundo, pela derrota no voto senatorial. O que torna os desejos de Salvini ainda mais atípicos são, primeiro, ele querer dissolver o governo durante as férias legislativas. Segundo, o fazê-lo na véspera do início da elaboração do orçamento italiano para 2020. Caso Salvini de fato consiga dissolver o governo e convocar novas eleições, a economia da Itália pode mergulhar em um caos, com um orçamento em suspenso, somado ao prospecto de um aumento de impostos defendido pela Lega.

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Todos contra um

Toda essa conjuntura fez com que Salvini causasse algo improvável: o desenho de uma ampla coalizão anti-Lega. Matteo Renzi chamou a proposta de um “governo institucional”; deve-se evitar o caos de adiar o orçamento, estabelecer ordem na casa e então convocar-se novas eleições. Claro, nesse cenário, ele sai com a imagem de zelador italiano, enquanto Salvini sai enfraquecido, isolado e visto como alguém que quer o poder à qualquer custo. Para o M5S, está em jogo o tamanho e a viabilidade do partido, já que novas eleições certamente resultariam em prejuízo no número de cadeiras.

No discurso, essa ampla coalizão seria para conter os excessos do populismo de Salvini, sua retórica contra imigrantes e contra a UE. Cabe agora aos políticos italianos montar um quebra-cabeças de um governo viável e fazer as contas para ter o necessário para, basicamente, substituir a Lega pelo Partido Democrático no governo, junto com outros pequenos partidos. Na Câmara dos Deputados são necessárias 316 cadeiras, em um universo de 630. Hoje o governo é formado pela soma das 216 cadeiras do M5S com as 125 cadeiras da Lega.

No plano de Renzi, a Lega seria substituída pelo PD, que conta com 111 cadeiras; isso garante 327 parlamentares, pouco mais que o mínimo necessário. E aí mora o problema, já que deputados do M5S podem não aceitar a coalizão, assim como os do PD, já que os dois partidos bateram forte um no outro durante as eleições. Para fornecer alguma “gordura” para a coalizão, até trinta cadeiras de partidos de esquerda, liberais pró-UE ou independentes poderiam ser arregimentadas. Do lado oposto, a Lega poderia se unir com o Forza Italia e o FdI para criar uma oposição com 262 cadeiras.

Resta saber se Di Maio e Renzi vão conseguir chegar num acordo para um governo de ampla coalizão. Se sim, a posição de Salvini ficará insustentável, ao menos por enquanto. Caso o governo seja formado e fracasse, Salvini torna-se instantaneamente o favorito para as próximas eleições italianas. Um prospecto de crise financeira na Alemanha torna a situação ainda mais urgente; aprovar o orçamento sabendo das dificuldades no futuro próximo. Caso Di Maio e Renzi não cheguem em um acordo e Salvini consiga convocar novas eleições, ele provavelmente será o novo premiê italiano, mas de uma Itália em crise.