O ano de 2024 talvez seja o ano em que as organizações internacionais começam com a maior pressão sobre sua legitimidade. Principalmente a instância mais poderosa, o Conselho de Segurança da ONU. Duas décadas de abusos e violações pelas potências que o compõem cobram um preço enorme para a mais longeva ordem internacional já estabelecida de maneira formal na História, com a ONU na véspera dos seus oitenta anos. O que explica isso e o que é necessário para a humanidade corrigir seus rumos?
A Legitimidade, com L maiúsculo, é a aceitação de autoridade. O Conselho de Segurança das Nações Unidas, o CSNU, é formalmente legítimo, todos os países o aceitam. Formalidade, entretanto, não é suficiente, a legalidade não é suficiente. Importante lembrar que legal e legítimo não são sinônimos e que muitas atrocidades da História receberam um verniz de legalidade. Sendo assim, quem legitima a ONU e o CSNU? Os Estados que compõem as organizações, por meio dos seus cidadãos.
Pesquisas de opinião mostram que a ONU ainda recebe altos graus de confiança e de receptividade. A tendência das últimas duas décadas, entretanto, é de queda desse número. Cada vez mais, menos pessoas confiam ou possuem uma avaliação positiva da ONU. Esse número normalmente é maior em países menos desenvolvidos ou quando as demografias consultadas são jovens ou minorias, populações que enxergam no sistema internacional uma forma de amparo e proteção.
Uma pesquisa em 36 países realizada em 2020 para a ONU por uma grande empresa de comunicações trouxe um aspecto interessante. Quando se faz uma distinção entre o sistema ONU e o CSNU, a aprovação do Conselho é muito menor. O sistema ONU envolve agências que despertam muito mais simpatia e confiança, como o Unicef, por exemplo. Já o CSNU, ligado diretamente à ação das potências e ao uso da força, ou seja, ao hard power global, é visto com desconfiança. Há uma quebra de confiança.
Representatividade
O que explica a queda da legitimidade e da confiança no principal órgão de segurança global? Primeiro, o CSNU torna-se cada vez menos representativo. Quando de sua fundação, em 1945, a ONU possuía cinquenta membros, com um Conselho de Segurança com quinze membros, sendo cinco deles as potências com assento permanente e o chamado poder de veto: EUA, União Soviética, França, Reino Unido e a República da China, naquele momento envolta em sua guerra civil.
Ou seja, quando de sua fundação, 30% da ONU fazia parte do CSNU. Hoje, com 193 membros, mais dois observadores, o CSNU continua com quinze cadeiras, ou seja, 7,7% da ONU. Em 1945, as potências do chamado P5 representavam 77% da riqueza mundial, 54% da população e 61,8% da massa seca da Terra, excluída a Antártica. Esses dados consideram a China como única, ou seja, sem separação entre a China Taiwan e a China continental, representação que foi trocada na ONU em 1971.
Hoje, o P5 representa 50% do PIB nominal mundial, 25% da população e 27% da massa seca da Terra, excluída a Antártica. Uma queda nos três índices. Essa queda de representatividade ocorre por três motivos. A descolonização, que aumenta o número de países independentes e reduz a importância das duas antigas potências imperiais europeias, o fim da URSS e a ascensão de novos pólos econômicos e de poder, o que inclui a recuperação das potências derrotadas em 1945, Alemanha e Japão.
Queda de representatividade é outro termo para dizer que o CSNU é pouco democrático hoje em dia. Nesse cenário, o caso mais gritante é o da Índia. Atualmente, trata-se da maior população do mundo, o sétimo maior território e a quinta maior economia em valores nominais, maior do que a economia do Reino Unido. De fato, mesmo com toda a estrutura criada para repressão dos indianos e de suas atividades econômicas autônomas, a Índia era economicamente maior que sua metrópole imperialista mesmo no século XIX.
Principalmente, a Índia é um dos apenas quatro países dotados da tríade nuclear: a capacidade de usar ogivas nucleares via ar, terra e mar. Os outros são os EUA, a China e a Rússia. A França abriu mão dessa capacidade com o fim da Guerra Fria e o Reino Unido nunca a possuiu. E essa potência, em todos os sentidos, não faz parte do CSNU, já que sua composição nunca mudou e foi criada em um momento em que o subcontinente indiano estava submetido à Londres.
Inação e conveniência
A inação também contribui para a queda de legitimidade do CSNU. Casos da década de 1990, como os genocídios em Ruanda e na ex-Iugoslávia, e a violência e destruição no século XXI, como em Darfur, no Iêmen, em Mianmar e na Palestina, fazem o telespectador se deparar com imagens de violência cruel e se perguntar: onde estão as potências, que não fazem nada? “Cadê a ONU?” – como se fosse uma organização super-poderosa que pudesse funcionar independente dos Estados-membros.
Pior ainda, muitos desses casos envolvem atrocidades e destruição cometidas pelas próprias potências do Conselho de Segurança. Iraque, Síria, Líbia, Ucrânia, para ficarmos nas últimas duas décadas. São as potências do Conselho de Segurança que transformaram a soberania de alguns países em ficção. Os céus do Líbano, do Paquistão e do Iraque são violados diariamente por essas potências, ou por países aliados dessas potências que recebem a devida cobertura.
Existe também a perspectiva de que essas potências usam e abusam do chamado poder de veto, especialmente quando são temas de seu interesse direto. Nos últimos meses, viralizou a imagem da embaixadora dos EUA na ONU vetando as resoluções que pediam por um cessar-fogo em Gaza. O único voto contra em quinze. Os EUA usaram, em toda a História, o chamado poder de veto oitenta e quatro vezes. Dessas, quarenta e seis, mais da metade, foram em resoluções envolvendo Israel.
A Rússia vetou resoluções sobre a Síria e sobre a Sérvia, enquanto a China vetou resoluções envolvendo a Coreia do Norte e Mianmar. Lembrando ao leitor que o chamado veto é um último e extremo recurso, feito em público. A maioria dos “vetos” é feita na pauta, antes da votação pública, uma espécie de “censura prévia”. Isso garante a falta de responsabilização por violações do Direito Internacional, cometidas pelas potências ou por seus aliados.
As duas principais guerras de agressão no século XXI foram cometidas por potências do CSNU, os EUA, ao invadirem o Iraque em 2003, e a Rússia, ao invadir a Ucrânia em 2022. Mesmo países não-potências violam o direito internacional sem serem responsabilizados, como foi o caso do Azerbaijão, que ignorou uma ordem da Corte Internacional de Justiça em fevereiro de 2023, sem nenhuma consequência. O tema não foi sequer pauta no CSNU, onde o país poderia sofrer sanções.
A falta de representatividade, a inação, a falta de responsabilização e o comportamento seletivo fazem com que a legitimidade do CSNU seja cada vez mais questionada e o seu desempenho visto como um fracasso. Sua reforma é urgente, com a expansão da representatividade, a inclusão de novos países e uma eventual revisão sobre o poder de veto. Tal reforma do CSNU não é, nem deve ser, independente de outros órgãos do Sistema ONU, melhor refletindo o mundo do século XXI, muito diferente do de 1945.
Não se pode perder de vista que “as Nações Unidas não foram criadas para nos levar ao céu, mas para nos salvar do inferno”, como definiu Dag Hammarskjöld, e que o mundo provavelmente seria pior sem ela. Também não se pode deixar seduzir por idealismos baratos. Tendo essas duas afirmações em mente, a comunidade internacional precisa reformar a atual ordem internacional antes que seja tarde demais, como foi em 1914, após o fracasso da ordem de Viena, e em 1939, após o fracasso da Liga das Nações.
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