O chanceler Ernesto Araújo apresentou sua demissão ao presidente Jair Bolsonaro. Mesmo que permaneça por mais alguns dias no cargo, sua situação já é insustentável. Não conta com o prestígio da maioria de seus pares, nem com o respeito de vários de seus subordinados, não cativa admiração ou respeito na academia e, como cereja no bolo, seu desempenho pífio em sabatinas perante os congressistas eleitos causou constrangimentos, conflitos e pedidos abertos pela sua renúncia. Ao ponto de os senadores prometerem entrar com um incomum pedido de impeachment do ministro mais ideológico da história do Itamaraty. Sob o ponto de vista de Ernesto Araújo, entretanto, ele sai com missão cumprida.
Ernesto Araújo chegou ao cargo mais alto da diplomacia brasileira pelas suas afinidades ideológicas. Ele não tinha carreira nem currículo para isso, nunca tendo chefiado uma embaixada, pensando como diplomata de carreira. Também não era alguém notável na vida intelectual ou política como alguns ocupantes da cadeira, como o jurista Francisco Rezek ou o ex-ministro e ex-senador Aloysio Nunes. Entrou no radar ministerial por seus textos políticos, especialmente o artigo Trump e o Ocidente, publicado nos Cadernos de Política Exterior da Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, no segundo semestre de 2017. No texto, mostra disposição às palavras-chave da visão de mundo de Olavo de Carvalho.
Contra esses moinhos de vento, Ernesto Araújo cavalgou com sua lança. Ao ponto de, em 22 de outubro de 2020, na formatura dos novos diplomatas brasileiros, bradar que “o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária” e que “é bom ser pária”. Claro que, nesse caso, é o que Ernesto Araújo chama de liberdade, uma interpretação bastante particular. E longe de justificar um ministro de relações exteriores louvar “ser pária internacional”. É como um chef de cozinha considerar ser interditado pela vigilância sanitária um elogio, ou um bombeiro piromaníaco. Novamente, uma visão muito pitoresca do mundo.
Aquela formatura, curiosamente, já tinha uma alfinetada em Ernesto Araújo pelos formandos, subordinados no primeiro passo da carreira, ao escolherem o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto como o homenageado da turma. O chanceler não se privou da indelicadeza de criticar o homenageado, por sua visão política de esquerda. E, claro, caso algum leitor mais recente desse espaço sinta que o texto negligencia os motivos dessa visão de mundo ser “muito particular”, lembro desses tópicos já terem sido abordados aqui. No início de 2019, no texto Os mitos idealizados no discurso de Ernesto Araújo, e, em maio daquele ano, na coluna Ernesto Araújo, a batalha de Viena e o choque entre civilizações.
Discurso não enche barriga
Questões como “globalismo”, conspirações mundiais, um comunismo onipresente, choques romanceados entre civilizações, visões idílicas, e sem fundamento, do passado, tudo isso faz parte da visão particular de Ernesto. E sua iminente queda mostra o óbvio: que discurso não enche barriga de ninguém. Sandices como “comunavírus”, emulando o discurso do governo Trump, posturas improdutivas, criando atritos com parceiros importantes, ou a mais pura postura humilhante de culto ao líder, entoando “mito” para o presidente, podem gerar aplausos em sua claque, tão ideologizada quanto, mas criaram problemas, não forneceram soluções e agravaram a situação atual brasileira.
Indo ao exemplo principal, a República Popular da China, um governo socialista e epicentro da atual pandemia do novo coronavírus. E também maior parceiro econômico e comercial do Brasil, e maior produtora de insumos farmacêuticos e de equipamentos sanitários do mundo. Ernesto Araújo, o presidente da república, seus filhos, os leitores desse texto, qualquer pessoa pode ter quaisquer sentimentos, opiniões ou repulsas no que concerne a China. Qualquer, mesmo, é da liberdade de opinião e de consciência de cada cidadão. Quando se trata da atuação profissional, ainda mais de um ministro de Estado, entretanto, a postura deve ser outra, especialmente em público.
Faça-se um exercício de imaginação. Imagine o leitor que é um grande empresário, com um grande parceiro ou fornecedor. Mesmo que você tenha divergências particulares enormes com o empresário parceiro, vai deixar de fazer comércio por isso? Mesmo que você desconfie desse parceiro e, discretamente, busque outro, você vai publicamente aliená-lo, correndo o risco de prejudicar seu próprio negócio? Ou, ainda, você continuaria completamente comprometido com um sócio que, publicamente, o acusa e o ofende? Ou o colocaria no fim da fila de prioridades? Em tempos em que tanto se faz analogias com empreendimentos privados, a conduta de Ernesto não seria bem quista numa empresa.
Claro que essa é uma comparação reducionista, que na política internacional existem outros fatores, mas não ao custo do sacrifício de prioridades. Quando se escreve que “discurso não enche barriga de ninguém” é pelo fato de a postura ideológica de Ernesto Araújo atrair simpatizantes, mas não atrai parcerias, não construiu pontes, não abriu mercados. O que o chanceler chamava em seus discursos de "Nova Política Externa Brasileira" somente trouxe de novo uma verve para a verborragia improdutiva. Muito slogan, pouca substância. Visitou países em que via proximidade ideológica, como Polônia e Hungria, e negligenciou grandes economias parceiras, como a Alemanha.
Quase obrigatório citar, é claro, o comportamento de Ernesto Araújo perante a pandemia. Como dito, criou atritos com a China. Também constrangeu a Índia, apresentando negociações antes do tempo devido, e depois culpando “a imprensa”, como se jornalistas tivessem adesivado um avião para “buscar vacinas” na Índia e postado em sua rede social. Realizou a formatura dos novos diplomatas, já citada, sem medidas adequadas. Foi até Israel buscar uma panaceia contra o vírus, enquanto comprometeu apoio político contra o Tribunal Penal Internacional, do qual o Brasil é Estado-parte. Lá, tomou pito público pela falta de máscara. Em conferência sobre a pandemia, devaneou sobre “tecnototalitarismo”.
Na América Latina, Ernesto Araújo foi igualmente improdutivo. Manteve o Brasil alijado do diálogo na crise venezuelana, postura iniciada por José Serra, e fez declarações sobre assuntos internos dos países vizinhos, como a Bolívia e a Argentina. No caso boliviano, ainda há muito que se esclarecer sobre a atuação da chancelaria brasileira na crise recente do vizinho. De qualquer maneira, afastou o Brasil da posição de mediador que poderia, e deveria, ter tomado. Ainda em interferência em temas internos, nos EUA, Ernesto iniciou a gestão Biden já mal visto, por ter relativizado a invasão do Capitólio, no dia seis de janeiro, e ter dado vazão aos devaneios dos trumpistas mais radicais.
Desgaste institucional
Por receber tantas críticas, a maioria delas apropriadas, realizou uma “dança das cadeiras” dentro do Itamaraty, erodindo critérios da instituição, promovendo simpatizantes e escanteando críticos ou “diplomatas comunistas”, ou o que valha. Para isso, via decreto, ampliou a possibilidade para diplomatas em níveis mais baixos da carreira ocuparem cargos e permitiu que assessores especiais, muito bem remunerados, não sejam do quadro de diplomatas. E, como Ernesto não gosta de críticas, em maio de 2020, cancelou o clipping de notícias que era encaminhado aos diplomatas brasileiros. No qual constava essa Gazeta do Povo, inclusive.
No campo institucional, o desgaste causado por Ernesto foi tamanho que o Senado rejeitou a indicação de Fábio Marzano para embaixador junto à ONU em Genebra, apenas a segunda vez na história em que algo do tipo ocorre. Culmina-se no ponto em que mais de trezentos diplomatas assinaram carta em que pedem a saída de seu chefe, acusando a política externa atual de causar “graves prejuízos para as relações internacionais e à imagem do Brasil”, com "condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo com os códigos mais elementares da prática diplomática". Todas as pontes de Ernesto estão queimadas, e ele não construiu nenhuma.
O mais interessante, entretanto, é que ele não vê assim. Ernesto tem certeza de que cumpriu sua missão, contra o “globalismo”, o “tecnototalitarismo”, o “covidismo”, o “comunavírus”, que ele lutou bravamente contra um sistema corrupto, uma imprensa corrupta, um Itamaraty corrupto, um mundo corrupto. Todos seriam corruptos, menos ele, seu líder e sua causa. É a certeza que embala a carga de Don Quixote contra os moinhos de vento. E, claro, Ernesto Araújo, um grande defensor da fé católica, não poderia deixar de flertar com a imagem de ser um mártir. Nas redes sociais, insinua que sua cabeça é pedida pelo Senado por ele não ter cooperado com a China no que concerne à rede 5G.
Ele, ao cair atirando, chega a nomear a senadora Kátia Abreu como interlocutora da conversa. Ela, que foi candidata à vice-presidência na chapa de Ciro Gomes, que frequentemente elogia a China. Está feita a narrativa: os chineses controlam o Senado e, por isso, Ernesto Araújo precisa sair. Não é por sua verborragia, por sua incompetência, por sua submissão, mas por sua brava resistência perante os chineses. Poderia até fazer sentido, caso o assunto das redes 5G fosse de competência do chanceler. E não é. Como o próprio Ernesto escreve na mesma rede social. Só que não precisa fazer sentido, precisa comover, mexer com o sentimental, essa é a verve do discurso de martírio.
Que ninguém ache que essa coluna possui algum elemento de crítica pessoal ao ex-chanceler. Ele desejando ou não, tornou-se um símbolo do atual governo e da postura perante a pandemia. Já se especula quem poderia substituí-lo no cargo. Fala-se do almirante Flávio Rocha, chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, ou do embaixador na França, Luis Fernando Serra. Independente de quem seja, no sistema de governo brasileiro, quem guia a política externa é a presidência. Ernesto Araújo era parte de um governo, era sintoma, não causa. A mesma coisa pode ocorrer com quem substituí-lo. Por ora, que Ernesto descanse um pouco, ansioso por voltar a frequentar o Beira Rio.
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