A clivagem internacional em torno da Venezuela ficou mais explícita na última semana. O evento da posse de Maduro para seu segundo mandato, na quinta-feira, dia dez de janeiro, serviu para deixar claro quem apoia e quem censura o mandatário venezuelano. O debate sobre a validade, ou não, do novo mandato, é conhecido. Maduro assume após vencer eleições pouco transparentes, antecipadas em meses de forma abrupta, com diversos líderes opositores presos sob acusações questionáveis, em um país com duas câmaras opositoras reivindicando o poder popular legislativo e sob forte aparato repressivo e militar.
Tudo isso é factual, empírico, não é interpretativo. Nem anula que a Venezuela sofre pressões econômicas e políticas dos Estados Unidos desde o governo Obama; o que tampouco justifica a atual crise venezuelana, já que o governo Maduro, antes de ser autoritário, era incompetente. A situação é mais cinza do que “preto ou branco”, pelo fato da Venezuela ser o país com maiores reservas comprovadas de petróleo e um solo riquíssimo em outros recursos, como ouro. Isso faz com que boas relações com a Venezuela sejam desejadas por qualquer Estado, ao mesmo tempo que busca impedir países antagônicos terem essas mesmas boas relações. E, claro, serve de pilar para a política venezuelana.
E não, isso não é teoria da conspiração, ou vício de análises da escola realista de política internacional. Por exemplo, meses atrás, na sabatina da diplomata Kimberly Breier como secretária-adjunta de Estado para o Hemisfério Ocidental, o senador Marco Rubio fez uma interessante pergunta sobre o tema Venezuela. Ao comentar das necessidades energéticas caribenhas, afetadas pelo colapso da indústria do petróleo na Venezuela, perguntou como esse colapso pode ser transformado em “oportunidades para o setor privado dos EUA”, especialmente para “impedir que um competidor geopolítico preencha esse vácuo”.
Em bom português, como empresas dos EUA podem operar no setor de petróleo da Venezuela, e como impedir que os chineses cheguem antes; chineses que, hoje, são os principais parceiros, credores e investidores da Venezuela no cenário internacional. E como a posse de Maduro se relaciona com esse cenário? Uma posse polêmica torna-se mais que um evento protocolar ou mera ocasião de aproximação, mas uma oportunidade para uma clara demonstração de censura ou de amizade.
Se uma liderança de qualquer país com o qual o Brasil tenha relações for assumir um mandato, certamente teremos a presença do embaixador brasileiro naquele país. Em alguns casos especiais, poderemos ter a presença de outro representante do governo mais graduado, como o Ministro de Relações Exteriores. Em casos ainda mais importantes, por qualquer razão, o próprio presidente da república pode representar o Brasil. É necessária uma situação muito divisiva para justificar a total ausência de um governo, como foi o caso da posse de Maduro. Por outro lado, torna ainda mais forte a presença de governos amigos.
Quem esteve ao lado de Maduro
Nos sinais de apoio a Maduro, estiveram presentes o presidente da Bolívia, Evo Morales, com seu chanceler, Diego Pary; o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, também acompanhado de seu ministro de Relações Exteriores; e Daniel Ortega, ditador da Nicarágua. Os três são chefes de Estado de países integrantes da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), formada em 2006, tradicionais aliados do regime venezuelano. Outro chefe de Estado presente foi Sáncez Cerén, presidente de El Salvador.
Em relação aos outros integrantes da ALBA, estiveram presentes o primeiro-ministro Ralph Gonsalves, de São Vicente e Granadinas, chefe de governo; o chanceler de Antígua e Barbuda e o vice-primeiro-ministro de Dominica, Reginald Austrie, concluíram o bloco. Outras representações caribenhas e mesoamericanas foram as de São Cristóvão e Névis, Belize e de Granada. Tais países podem soar mera curiosidade para um leitor brasileiro, dado que diminutos, mas as relações caribenhas são historicamente importantes para a Venezuela, o país com maior costa no Mar do Caribe; além de local de exploração petrolífera. Ainda próximo geograficamente, o vice-presidente do Suriname compareceu.
No contexto regional da América Latina, apenas dois países enviaram representantes. O México enviou um diplomata e o Uruguai enviou seu chanceler, Rodolfo Nin Novoa. Interessante ter em mente que o Uruguai foi, por dois anos, o principal defensor da inserção internacional da Venezuela na região, impedindo a suspensão do país no Mercosul. A argumentação uruguaia é a de que a Venezuela passa por uma profunda crise e que seu governo merece censuras, entretanto, isolar o país não colabora com uma solução.
Saindo da região, ocorreu uma curiosa escolha chinesa. Talvez por outras prioridades ou por problema de agenda, o país não enviou suas principais representações e lideranças. Ainda assim, o governo chinês provavelmente desejava enviar alguém que denotasse importância e apreço por parte de Pequim. Enviou, então, o seu ministro da agricultura, Han Changfu. Anos atrás ele esteve no Brasil, onde se encontrou com sua então homóloga brasileira, Kátia Abreu. A China é o maior comprador de exportações agrícolas brasileiras e, como dito, hoje é o maior parceiro venezuelano.
Do Oriente Médio vieram o vice-presidente da Turquia, Fuat Otkay, e o Ministro da Defesa do Irã, Amir Hatami, além de Qais Shqair, embaixador da Liga Árabe no Brasil, e um diplomata do Líbano. O que desperta mais a atenção é a relevância dos representantes da Turquia e do Irã, motivados pelas possibilidades de negócios na área de defesa, pela cooperação na indústria do petróleo e também por um elemento pouco comentado na imprensa. A criação de mecanismos comerciais que não dependam do dólar, tanto para contornarem sanções de Washington quanto para servir de arma econômica contra a economia dos EUA.
O maior exemplo disso é o fato de que Rússia e China, hoje, somente realizam comércio bilateral em suas próprias moedas nacionais. A presença turca e iraniana na posse é também um sinal não apenas de apoio ao regime de Caracas, mas de desagrado aos EUA; o milenar “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Já a presença de um diplomata libanês certamente reacende as conjecturas sobre as relações entre o governo venezuelano e o grupo Hezbollah. O ministro venezuelano de indústrias e ex-governador de Aragua, Tareck El Aissami, é de ascendência libanesa e alvo de sanções dos EUA por supostamente lavar dinheiro para o grupo.
Importante lembrar que, ainda assim, o Estado do Líbano é separado do Hezbollah, e o diplomata presente representava seu país. O Hezbollah, hoje, é praticamente um “Estado dentro de um Estado”, possui presença no governo e relações externas próprias, com fortes relações, de financiamento e de fornecimento de armas, com o Irã. Ainda no assunto petróleo, o secretário-geral da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, Mohammed Barkindo, também esteve presente. E, claro, a Rússia, com Ilyas Umakhanov, vice-presidente do Conselho da Federação, algo como o Senado russo.
Um caso provavelmente similar ao Chinês; queriam uma demonstração além do protocolar, mas sem opções na alta liderança do governo. A Rússia é, hoje, a maior parceira da Venezuela em temas de segurança e de gás natural, o que explica essa presença. Como curiosidade, esteve presente Anatoli Bibílov. Não se preocupe se nunca ouviu falar dele, é o presidente da Ossétia do Sul, república declarada independente em território internacionalmente georgiano, e postulante à entrada na Federação Russa, habitada por ossétios russófonos.
Fecham a lista de presenças delegações da África do Sul, da Argélia, de Belarus, de Moçambique e da República Democrática do Congo, além de uma situação similar em delegações de brasileiros e de irlandeses. Ambos os Estados nacionais não enviaram representantes, o que será visto mais adiante; entretanto, representantes de partidos desses países estiveram presentes. Do Brasil foi Gleisi Hoffmann, presidente do Partido dos Trabalhadores. A ida da ex-senadora e deputada federal eleita pelo Paraná atraiu críticas no país, incluindo dentro do seu partido, e ela escreveu uma carta justificando sua presença. Da Irlanda esteve presente Dawn Doyle, Secretário-geral do Sinn Féin; o partido de esquerda possui grande presença nos legislativos da República da Irlanda, da Irlanda do Norte e do Reino Unido, onde é o maior partido irlandês, embora adote uma postura historicamente de cadeiras vazias.
Quem recusou Maduro
A ausência pode ser tão, ou mais, significativa que a presença, por isso é importante, no jogo diplomático e das relações internacionais, prestar atenção também em abstenções, distâncias e silêncios. Não apenas as ausências por falta de relações basilares, de países longínquos ou sem embaixadas na Venezuela. O vazio mais significativo na posse foi o latino-americano. Para um governo que se diz defensor da América Latina e bastião contra o imperialismo dos EUA e o colonialismo europeu, Maduro não foi prestigiado pela região. Para dizer o mínimo. Dos países do Grupo de Lima, apenas o México enviou representação. E mesmo o Equador, cujo presidente é de centro-esquerda e não faz parte do Grupo de Lima, também se ausentou.
O mesmo cálculo é aplicado ao Mercosul, de onde apenas o Uruguai esteve presente. O governo paraguaio, integrante tanto da organização econômica quanto do grupo político, foi ainda além. Minutos após a posse de Maduro, o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, divulgou uma nota afirmando que existe “ruptura da ordem constitucional” na Venezuela, classificou as eleições de maio de 2018 como “ilegítimas” e determinou o rompimento de relações, com o fechamento da embaixada e “retirada imediata do pessoal diplomático paraguaio creditado no dito país. Igualmente se dará um prazo razoável para a retirada do pessoal diplomático venezuelano do território nacional”.
Outro grupo que censurou Maduro e não esteve presente foi a União Europeia, em uníssono; descontando, é claro, a comitiva de um partido irlandês, que não representava o governo da república. Nenhum dos vinte e oito Estados-membros enviou representantes. Ao contrário, a UE afirmou que a posse de Maduro afastava o país de uma solução. A chefe da diplomacia europeia, Federica Mogherini, afirmou que a UE “lamenta profundamente que seu pedido por novas eleições presidenciais de acordo com padrões democráticos reconhecidos internacionalmente tenha sido ignorado e que o presidente Maduro inicie um novo mandato com base em eleições não democráticas”. A postura europeia vem desde maio, com as eleições, afirmando que elas não seriam reconhecidas.
Os Estados Unidos, obviamente, não se representou. O que é interessante é que o responsável por comunicar isso não foi um porta-voz ou o secretário de Estado, mas John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional e o principal “falcão” em Washington, termo para políticos, analistas e diplomatas adeptos de uma política externa agressiva, literalmente. Em comunicado, Bolton escreve que “os Estados Unidos não reconhecem a posse ilegítima do ditador Nicolás Maduro. A sua ‘eleição’ em maio de 2018 foi vista internacionalmente como não livre, nem justa e nem crível”.
Bolton foi além, afirmando que o governo dos EUA apoia a Assembleia Nacional da Venezuela, “único ramo legítimo do governo devidamente eleito pelo povo venezuelano”. Outros países que emitiram notas condenando a posse de Maduro foram a Geórgia, antagonista da Ossétia do Sul; a Jamaica, o Haiti e as Bahamas. Além do saldo final de apoio de 23 representações e a censura de 46 países, outros países com embaixada em Caracas adotaram posturas protocolares, como o Egito, que se fez representar pela Liga Árabe, e a Suíça, que emitiu uma nota, com o perdão do chavão, neutra.
Prestar atenção nessa divisão de forças, de apoios e de interesses, será de suma importância para compreender a distribuição dos furores na crise venezuelana. Ainda mais após Juan Guaidó, líder da Assembleia Nacional, ter declarado a eleição inválida e ter sido preso sob a acusação de golpe de Estado. As ações de Guaidó foram alvo de elogios por Bolton e são o prenúncio de uma divisão na Venezuela entre duas representações que afirmam deter o legítimo governo do país. O fiel da balança, como já dito aqui nesse espaço, é o exército venezuelano. Hoje, são os militares o principal pilar do governo Maduro. O maior significado disso é que essa crise ainda vai ressoar na sociedade venezuelana, com futuros militares ressentidos, independente do resultado da crise.