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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

União Europeia

O orçamento dos Estados Unidos da Europa de Victor Hugo

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O primeiro-ministro da Grécia, Kyriakos Mitsotakis, o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sanchez, e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, durante cúpula da UE em Bruxelas em 20 de julho de 2020 (Foto: JOHN THYS/POOL/AFP)

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A Europa deu um passo ousado rumo ao projeto de federalização da União Europeia nessa semana. A reunião do Conselho Europeu, que reúne os líderes executivos democraticamente eleitos dos 27 países membros da UE, começou na sexta-feira, dia 17. A tarefa era elaborar o orçamento europeu para o período 2021-2027. O encontrou só terminou quase 90 horas depois, nas primeiras horas da terça-feira, dia 21. Após algumas concessões e arranjos, o acordo final foi bastante ambicioso e inédito.

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Quatro grupos em debate

Na discussão orçamentária, os países europeus estavam divididos em quatro grupos principais. Um deles sequer é um grupo propriamente, mas uma dupla. França e Alemanha, os dois principais pilares da UE desde suas origens, na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Os dois governos defendiam mais gastos e um orçamento recheado para combater os efeitos da pandemia do novo coronavírus, recuperar as economias e aprofundar ainda mais a união, para evitar que a pandemia seja utilizada politicamente pelos eurocéticos mais radicais.

O grupo oposto é o das economias de alta qualidade de vida que defendiam medidas mais austeras e a necessidade de mecanismos mais rígidos para os investimentos. Áustria, Dinamarca, Finlândia, Suécia, liderados por Mark Rutte, dos Países Baixos. Para esses países, a pandemia não poderia ser usada como justificativa para supostas irresponsabilidades fiscais e “premiar” países que já receberam aportes europeus antes. Esse é um recado direto aos outros dois grupos.

Um é o dos países do sul europeu, como Itália, Grécia e Espanha, que estavam em crise econômica mesmo antes da pandemia e que, historicamente, receberam volumosos investimentos e créditos europeus, ciclo renovado desde a crise de 2008. Simultaneamente, são dos países que foram mais afetados pela pandemia, tanto em suas economias quanto em questões sociais, com alto número de mortes.

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O quarto bloco é o dos países do leste, mais recentes na UE. Polônia, Hungria e Romênia são países que foram os principais focos dos investimentos europeus nos últimos orçamentos, tema já abordado aqui nesse espaço. Com esses investimentos, suas economias estavam em crescimento, o que faria com que não fossem economias em situação de emergência. Além disso, duas suspeitas incorrem sobre esse quarto grupo de países. A primeira é a de acusações de violações das cláusulas democráticas da UE, como na reforma do judiciário polonês.

A outra acusação é de algo mais “habitual”: corrupção. Investigações e escândalos na Romênia, na Eslováquia e na Tchéquia envolvem diretamente políticos desviando fundos da UE para benefício próprio. Essas quatro posições internas da UE causaram alguns choques e confrontos na reunião. O francês Macron teria se exaltado com o austríaco Kurz, e o húngaro Orbán e o neerlandês Rutte teriam trocado algumas palavras mais duras sobre corrupção e paraísos fiscais, classificação por vezes usada sobre os Países Baixos.

Quase dois trilhões de euros

Ao final das contas, o leitor talvez tenha visto similaridades com qualquer discussão orçamentária em grandes federações, como os EUA ou o Brasil. Uma região que demanda mais protecionismo, outra que necessita de recursos para uma área específica, estados mais endividados do que outros. E, claro, estados que contribuem mais e outros que recebem mais recursos. Grupos parlamentares distintos, interesses, perspectivas diferentes, etc. Claro, isso é um paralelo simbólico, mas não se limita à isso.

Em linhas gerais, foi estabelecido um fundo para aliviar os danos econômicos do novo coronavírus no total de 750 bilhões de euros, mais o orçamento de um trilhão de euros para o período 2021-2027. Os pormenores podem ser consultados no site da UE, caso o leitor deseje: quanto vai para cada área, qual a cota máxima de cada país e os mecanismos de controle. Rutte desejava um poder de veto, o que foi rejeitado pelo temor de poder paralisar todo o orçamento.

No lugar disso, a aprovação dos planos nacionais será por maioria qualificada, pela Comissão Europeia, após parecer do comitê que reúne os 27 ministérios de economia. Caso ocorram objeções nessas instâncias, aí sim o caso poderá ser levado ao Conselho Europeu. Mark Rutte, mesmo parcialmente derrotado, ficou satisfeito com o mecanismo de vigilância, em que cada membro será fiscalizado pelos outros 26. Mecanismos sobre questões de princípios democráticos ainda serão elaborados.

Os passos ousados do novo orçamento estão em aspectos mais concretos. Primeiro, e mais importante, será aprofundada a união fiscal da União Europeia, assunto negligenciado até 2008. Hoje, por exemplo, todos os países membros possuem metas orçamentárias e inflacionárias internas. Agora, pela primeira vez, a UE vai emitir títulos e contrair empréstimos, para reduzir a crise do novo coronavírus e para aprofundar a integração econômica entre os sócios comunitários.

Segundo o comissário (ministro) europeu de Economia, Paolo Gentilloni, “é o acordo econômico mais importante desde a criação do euro”. Em outras palavras, a UE vai se endividar como bloco. Cada país vai pagar o que pegou emprestado, mas, ao contrair o empréstimo em bloco, a UE consegue melhores condições do que seria com cada país em separado. Essa é uma das principais razões de ser da própria UE, importante lembrar. Num mundo de superpotências e de reconstrução do pós-guerra, conseguir, via cooperação, melhores condições e desempenho do que em separado.

Defesa, saúde e ambiente 

Esse é um significativo aprofundamento da União Europeia, agora com um balanço fiscal realmente comum. E não foi o único. Outras duas pautas foram aprofundadas de forma inédita. Primeiro, na defesa. O acordo cria o Fundo Europeu de Defesa, com sete bilhões em caixa, para financiar projetos conjuntos de capacidade de defesa. Outro bilhão e meio de euros será investido em “mobilidade militar”, para facilitar a movimentação de forças militares na Europa, com instalações duplas, nacionais e europeias.

Finalmente, outro novo fundo, o Fundo Europeu para a Paz, com cinco bilhões de euros, para operações de paz. Na superfície parece algo idealista, mas é uma maneira de combinar e operacionalizar forças europeias multinacionais em teatros ativos. Outro aprofundamento, consequência direta da pandemia do novo coronavírus, foi a criação de mecanismos comuns de saúde. Um fundo de dois bilhões de euros para estoque de insumos médicos, monitoramento de ameaças e a criação de uma força reserva móvel de profissionais de saúde.

Um exemplo hipotético. A Eslovênia sofre um surto de alguma doença e precisa, de maneira emergencial, de enfermeiros e médicos para complementar seu pessoal. Essa “força médica europeia” pode ser enviada. Algo similar, em espírito, ao uso da Força Nacional de Segurança Pública brasileira para auxiliar um polícia estadual quando solicitado pelo respectivo governo do estado. Mais um aprofundamento de cooperação interna da União Europeia.

Finalmente, algo que pode afetar diretamente o Brasil. O orçamento setenial também prevê mecanismos para adaptação econômica. Desenvolvimento de inteligência artificial, digitalização e também um caminho mais renovável, algo que não é novidade, dado o crescimento dos partidos verdes europeus. Isso significa que parte desse pacote será financiada por impostos sobre produtos frutos de emissões fósseis. Isso pode afetar exportações brasileiras para o bloco, que frequentemente ameaça represálias em relação ao desmatamento amazônico.

Claro que isso é, no fundo, uma possível medida protecionista sob pretextos ambientais. E, importante frisar, o acordo demandou muita negociação, concessões dos envolvidos, mas ainda não é o texto final. Ele agora segue para o Parlamento Europeu, cujos líderes de bancadas já sinalizaram que vão brigar por seus respectivos interesses. Ainda assim, o passo dado foi bastante ambicioso. Pode ser um sucesso, pode ser um excesso, mas o escritor Victor Hugo, criador do termo “Estados Unidos da Europa”, ficaria feliz.

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