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No último mês de março, completaram-se três anos do início das minhas colaborações aqui na Gazeta do Povo. “Parece que foi ontem”, diz o clichê. Em março de 2018, escrevi sobre Putin e o espaço pós-soviético, um dos temas que mais me interessa na minha trajetória profissional. Um texto com enormes dez páginas, mais de trinta mil toques. Alguns meses depois, em agosto, tornei-me colunista fixo, com duas colunas semanais regularmente. A coluna de hoje será um pouco diferente, como talvez já tenha ficado claro pelo extenso uso da primeira pessoa. Depois de todo esse tempo, gostaria de bater um papo com os leitores, sobre alguns dos aspectos e dos desafios de tratar publicamente de política internacional.
Já são 275 textos na coluna regular, mais as colaborações anteriores. Basicamente um livro, dividido em pílulas semanais. Uma quantidade grande de textos em um espaço com dezenas de milhares de leitores terá como consequência óbvia o fato de alguns textos terem maior audiência, outros menos, uns despertarem mais simpatia, outros nem tanta, alguns debates acalorados, outros pouco percebidos, e por aí vai. E isso também vai variar de acordo com cada espaço. Existem diferentes perfis de leitores, divididos seja por classe social, por faixa etária, por área de atuação ou por preferências ideológicas. Trabalhar com o público na internet significa ser lido e avaliado por vasta gama de pessoas. O meu leitor aqui nesse espaço na Gazeta é diferente do que me consome em podcast, por exemplo.
Esse é um desafio, mas um desafio gostoso. Como transmitir uma mensagem ou uma análise para diferentes públicos? Quais abordagens funcionam melhor de acordo com cada mídia ou com cada perfil de leitor? Falar de Guerra das Malvinas com uma pessoa de considerável poder aquisitivo, na faixa dos sessenta anos de idade, que possui memórias do conflito e do tempo em que Argentina e Brasil eram rivais políticos profundos, é uma coisa. Falar desse mesmo conflito com um jovem de vinte anos, ainda começando sua carreira profissional e que o máximo de rivalidade que viu com nossos vizinhos é no futebol, é outra bem diferente. Um exemplo simples, mas acho que funcionou.
Textos com maior ou menor alcance
Uma das explicações do porque alguns textos movimentam mais leitores do que outros é, obviamente, o tema daquela coluna. Textos sobre a questão de Gibraltar entre Reino Unido e Espanha, ou a recente revolução no Sudão, não despertaram tanto interesse quanto outros. Isso quer dizer que são temas menores? Claro que não, apenas não possuem tanto apelo, podendo ser encarados como mera “curiosidade” pela maioria das pessoas. Não estão presentes no noticiário, no cotidiano ou não “mexem” com o íntimo dos leitores. Esse é outro desafio ao abordar política internacional, mas um desafio desagradável.
O espaço para a política internacional, no Brasil, é historicamente negligenciado, resultado cultural de um país por muito tempo pouco aberto comercialmente e com poucos projetos estratégicos de longo prazo na política. No outro oposto, estão os temas que mexem com os leitores e atraem muita atenção. Política dos EUA, por exemplo. Brexit e política externa brasileira são outros, o segundo por motivos óbvios. E, claro, Israel, Palestina e tudo o que aconteça na região do Levante. Um tema que está presente no noticiário de forma constante por décadas, que mexe com duas grandes comunidades no Brasil, de árabes e de judeus, e também dialoga com a religiosidade de algumas pessoas, que enxergam no Estado de Israel um retorno do Israel bíblico e as profecias relacionadas, como o Terceiro Templo e a chegada, ou retorno, do messias.
Só que não é possível escrever textos como o sobre Putin, de dez páginas, em toda coluna. O leitor não teria paciência, as editoras ficariam descabeladas e o colunista, eu, exaurido. Naquela ocasião, modéstia de lado, não ficou ponta solta nenhuma. Estava praticamente tudo ali para que fosse possível compreender a ascensão e a consolidação de Putin como alguém que resgatou o orgulho nacional russo no período pós-soviético. Claro, um ou outro ponto sem muita profundidade, mas, ainda assim, estava lá. E esse é outro desafio, um muito difícil de se obter uma resposta, uma “fórmula”. Como tratar de temas que mobilizam emotivamente o leitor? Um livro de cada vez? Ou simplesmente abandonar tais temas e focar no Quirguistão, ou no recente confronto fronteiriço entre uzbeques e tadjiques?
Parte da motivação dessa coluna nasceu do fato de que as últimas seis colunas foram relacionadas a esses temas que mobilizam o leitor. Duas sobre o Brexit, duas sobre EUA, uma sobre Israel e outra sobre o Chile e Pinochet. Mais de cem comentários na soma geral, sendo mais de cinquenta deles no texto sobre a constituinte chilena. E, acredito que em todas as colunas citadas, mencionei que eram temas já vistos aqui, com abordagens que se complementam. Justamente por ser virtualmente impossível esgotar esses temas em apenas um texto. Além de impossível, não seria prático, por isso a referência constante aos textos pretéritos.
Busca por equilíbrio
Na coluna “Jerusalém, a crise política em Israel e a torcida mais racista do mundo”, por exemplo, a ideia era trazer algo novo, algo pouco visto na cobertura de imprensa sobre Israel: o crescimento do nacionalismo por movimentos judeus anti-miscigenação e anti-"assimilação", o que leva ao crescimento da violência sectária dentro das cidades israelenses. Um fenômeno que é novo, não era a regra em Israel até fins de anos 1970 e, novamente, pouco comentado. Para exemplificar esse fenômeno, trouxe a torcida organizada do clube Beitar Jerusalem, também pouco conhecida, mas muito bem estruturada e considerada perigosa.
Nos comentários, muitos cobrando uma ausência do Hamas no texto, alguns até dizendo que o texto buscava “justificar” atentados terroristas, quando isso sequer era o cerne da coluna. E, sobre o Hamas, aqui nesse espaço, já escrevi que “O Catar serve também de sede das conversas para o estabelecimento de um 'novo Hamas', um grupo mais moderno e que seja reconhecido como ator político legítimo; até o momento isso não aconteceu, sem o repúdio da carta fundadora que prega a destruição de Israel.”. No mesmo texto, defini o Hamas como “grupo islamita sunita ligado à Irmandade Muçulmana”. Em outra coluna, mencionei a condição defendida pelo então governo Trump dos EUA, “o desmonte do Hamas, grupo extremista que não reconhece a existência de Israel”.
Não deveria ser necessário definir o Hamas pelo que é em todo texto sobre Israel e a Palestina. Ou é? Esse é um dos desafios. O quanto cada texto é autossuficiente e o quanto ele é parte de um conjunto maior. Uma reportagem de uma partida de futebol, por exemplo, possui um começo claro, a preparação para a partida. O desenvolvimento é o desenrolar da peleja. E sua conclusão é a análise das consequências do resultado da partida. Agora, uma coluna que analise o plantel de um determinado clube de futebol? Precisa voltar e lembrar de negociações fracassadas, avançar e prever desafios futuros, mas voltar até que ponto? Avançar até onde?
Como parte dessa maior mobilização do leitor, por vezes ocorrem respostas emotivas ou ideológicas. É muito comum, por exemplo, leitores tentarem adivinhar ou prever preferências ideológicas minhas, de outros autores e jornalistas, ou então propósitos escusos em cada coluna. Essa “suspeição” é normal, ainda mais em 2021, parte do ofício, embora eu possa garantir que não tenho agendas escusas que não compartilhar minhas perspectivas e um pouco de conhecimento. Por outro lado, quando escrevi na última coluna sobre o fim do Chile de Pinochet, parecia que eu estava falando de um anjo de candura, não de um ditador, torturador, corrupto e traficante de armas e possivelmente de drogas. E esses são princípios básicos para se falar de qualquer governante de um Estado, ainda mais um que esteve no poder até virtualmente ontem. Não era um tirânico senhor feudal de mil anos atrás, embora se comportasse como tal.
Teve até a carta “e Fidel Castro?” na mesa. Em texto anterior escrevi que “não existe 'mas', 'mas e Cuba?', 'mas e a Venezuela?'. A visão de que só existem dois caminhos, Pinochet ou Cuba, é um falso dilema superficial. Nada execrável feito em outro lugar legitima o regime Pinochet.”. E isso acaba fazendo parte do desafio. Como escrever sobre política internacional e sobre História levando em consideração as emoções do leitor? Deve-se explorar essas emoções, no bom e velho sensacionalismo? Dialogar com elas, com o risco de perder o foco? Ignorá-las, podendo alienar o próprio leitor? É necessário encontrar um equilíbrio, por vezes acho que encontrei, por vezes vejo que não. São esses alguns dos vários desafios de se falar de política internacional para um público grande. Três anos depois, ainda estou aprendendo e agradeço a todos os leitores e leitoras que dedicaram minutos de sua vida aos meus textos. Que venham mais três anos.