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O grupo sul-coreano de K-pop BTS marcou presença no salão da Assembleia Geral da ONU nessa segunda-feira, dia 20 de setembro. Os jovens artistas fizeram um discurso pela vacinação contra Covid-19 entre os jovens, afirmando que a vacina é o meio das apresentações voltarem e que os jovens de 2021 não são uma “geração perdida”, mas uma geração que vai crescer sob o signo da resiliência. Além da mensagem motivadora, o grupo também gravou um vídeo musical. Tudo isso parece uma simples jogada de marketing ou afetação para adolescentes mas, na verdade, é consequência de uma pensada e frutífera política de Estado por parte da Coreia do Sul.
Recentemente, os integrantes do BTS tornaram-se os primeiros artistas sul-coreanos a liderar o principal ranking musical do mercado dos EUA. Além de dono de diversos recordes de visualizações, o BTS é parte de um movimento musical mais amplo, o K-pop, abreviação em inglês para “Pop coreano”, mistura de música eletrônica, pop, hip hop e R&B. Surgindo na década de 1990, o K-pop é consequência da abertura política, econômica e cultural que a Coreia do Sul passou no final da década anterior. E, hoje, o K-pop é parte de uma onda mais ampla de cultura coreana, com produções televisivas e do cinema também conquistando mercados e sucesso de crítica.
Globalização
O exemplo mais óbvio disso é o filme Parasita, o primeiro filme falado em um idioma que não o inglês a vencer o Oscar de Melhor Filme, junto de outras três estatuetas. Sua bilheteria foi de mais de quinze vezes seu orçamento, fazendo dele altamente lucrativo. E o uso do termo “onda” não foi acidental. Em 1995 foram lançadas as bases da política Hallyu, a Onda Coreana, com dois pilares. O primeiro é a melhoria da imagem do país pela exportação de produções culturais sul-coreanas, aproximando pessoas dos diferentes continentes da cultura coreana, numa abordagem de Soft power, conceito de relações internacionais formulado por Joseph Nye, em que um Estado se beneficia de valores e bens culturais para obter a cooperação de outros Estado e sociedades. No caso sul-coreano é a Segyehwa, literalmente "Globalização", mas com o sentido de tornar a Coreia do Sul global.
O segundo pilar é o econômico. Na década de 1990, a Coreia do Sul pós-abertura passou por grande crescimento da sua economia, mas ocorreram também choques com a entrada de produtos estrangeiros, incluindo produtos culturais, como séries produzidas nos EUA. Como consequência, o governo sul-coreano, do então presidente conservador Kim Young-sam, instaurou medidas protecionistas na indústria cultural sul-coreana, além de programas de incentivo e financiamento pelo Estado. Por exemplo, no cinema e na televisão existem cotas mínimas para produções sul-coreanas na grade horária.
No caso do K-pop, criou-se uma indústria cultural, centrada em grandes conglomerados que unem serviços de caça-talentos, estúdios de gravação, logística de distribuição, academia de música e de dança, empresas de produção de eventos, tudo sob a mesma empresa. Os integrantes dos grupos, sejam masculinos ou femininos, são chamados de idols, e são selecionados ainda na infância. Os anos de treinamento e de produção de idols envolvem aparência física, treinamento em dança, canto, etiqueta e idiomas e até mesmo a criação de personas que o artista não pode abandonar em público, como o “rebelde sem causa” ou “a tímida e delicada”. E como tudo isso se relaciona à uma coluna de política internacional?
Para o último orçamento nacional sul-coreano pré-pandemia, em dezembro de 2019, o governo então disponibilizou mais de US$ 5 bilhões para o Ministério da Cultura, o maior montante da História, 1,25% de todo o então orçamento nacional. Quase R$ 30 bilhões em valores de hoje. O orçamento inclui programas para novos cineastas, desenhistas e uma arena de shows dedicada exclusivamente ao K-pop. Uma das contrapartidas dos investimentos estatais é a exigência de que as produções sejam as mais acessíveis possíveis ao mercado mundial, como a adaptação para o consumo digital. E a Hallyu, a Onda Coreana, tem dado resultados.
Investimentos e ganhos
Não são apenas resultados simbólicos ou de imagem, como quando o então presidente dos EUA, Barack Obama, em 2013, citou a música Gangnam Style, o primeiro vídeo com um bilhão de visualizações da História, para falar da importância da cultura coreana e seu impacto mundial. No mesmo ano, o grupo Super Junior apresentou-se no Brasil, o primeiro show de K-pop no país. Alguns anos antes, em 2009, o governo criou os Centros Culturais Coreanos, difusores do idioma e da cultura do país, que também servem para facilitar negócios. Hoje, os centros estão em 27 países e são parte oficial das relações exteriores do país, assim como o K-pop, com a organização do K-Pop World Festival pelo Ministério de Relações Exteriores da Coreia do Sul.
E o soft power leva aos ganhos concretos e financeiros. Entre os idiomas estudados por estrangeiros, o estudo de coreano é o segundo idioma que mais cresceu no século XXI. O adolescente fã de BTS torna-se um interessado pelo idioma coreano. Mais falantes do idioma, mais facilidade para negócios e relações comerciais, mais intercambistas, mais turistas. E mais consumidores dos produtos sul-coreanos. Cada dólar investido no setor cultural vira cinco dólares em exportações de roupas, cosméticos e eletrônicos, além de crescimento no turismo. No caso de roupas e cosméticos, os idols são os próprios garotos e garotas propaganda dos produtos, o fenômeno K-beauty, “Beleza coreana”.
Também há a difusão da culinária coreana, cada vez mais exportada. É extremamente fácil de encontrar vídeos de idols cozinhando na internet, e não é exatamente por um hobby pessoal do artista. É, novamente, parte de uma política de Estado, pensada e executada. Esse processo é analisado no livro The Birth of Korean Cool, da jornalista coreana radicada nos EUA Euny Hong. Em 2019, a Coreia do Sul recebeu mais de 17 milhões de turistas estrangeiros, três vezes o número de turistas de quinze anos antes. Infelizmente, o sucesso da política cultural sul-coreana deixa explícito o desperdício de oportunidades no Brasil, um país enorme e com diversos possíveis atrativos.
A política cultural sul-coreana contribui inclusive para a melhoria das relações com a Coreia do Norte. Antes o K-pop era visto como uma “arma” do sul, nos últimos anos ocorreram concertos de K-pop no norte, com a presença de Kim Jong-un. Turistas, exportações, consumidores, falantes do idioma, dinheiro, prêmios internacionais, tudo isso mostra o sucesso da política cultural sul-coreana e a aproximação do país com o restante do mundo. Claro, se não for suficiente o fato de que um grupo musical gravou um vídeo no salão da Assembleia Geral da ONU e tomou de assalto todas as manchetes mundiais.
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