A Segunda Guerra Mundial é o maior conflito da humanidade. O verbo está no presente pois, de certo modo, ela não acabou. Não apenas em feridas nacionais abertas ou em memórias dos cada vez mais escassos veteranos do conflito. Além de bastante lembrada na cultura pop, a Segunda Guerra Mundial ainda dura, com territórios em disputa e pendências nas relações internacionais.
É claro que isso se trata de um gracejo, não existem milhões de soldados mobilizados prontos para a morte à qualquer momento. O que existe são pendências territoriais que impedem a completa normalização de algumas relações, incluindo em uma das zonas mais complexas na geopolítica e que mais chama a atenção do mundo. Na última terça-feira, dia 22, o presidente russo, Vladimir Putin, e o premiê japonês, Shinzo Abe, se encontraram para discutir um tratado final de paz entre os dois países.
Conferências de paz setenta anos atrás
Para entender os eventos recentes e as pendências atuais, é necessário olhar algumas décadas atrás e ver sua origem na História. A Segunda Guerra Mundial foi encerrada por quatro tratados principais, além de alguns outros textos específicos à um ou outro país. O primeiro deles foi o Acordo de Potsdam sobre a ocupação da Alemanha e da Europa, de 2 de agosto de 1945.
A Conferência de Potsdam foi a terceira e última conferência que contou com os chamados “Big Three” da Segunda Guerra: EUA, União Soviética e Reino Unido. As duas conferências anteriores tiveram as presenças dos respectivos líderes: Franklin D. Roosevelt (FDR), Josef Stálin e Winston Churchill. As fotos dos três líderes juntos são célebres até hoje. A de Potsdam foi ligeiramente diferente; FDR havia falecido, substituído por seu vice, Harry S. Truman.
Além disso, ela começou com Churchill mas terminou com o líder trabalhista Clement Attlee; por conta da simultaneidade das eleições, ocorreu a mudança de cargo durante a conferência. O texto estabelecia a ocupação militar da Alemanha; a desmilitarização, a desnazificação e a reconstrução do país; reparações de guerra; mudanças territoriais com a Polônia e a expulsão de alemães ao leste da linha do Oder–Neisse; e o julgamento de criminosos de guerra e contra a humanidade, cujo mais famoso tribunal é o de Nurembergue.
A paz com a Alemanha, entretanto, só foi concluída em 1990, com o Tratado sobre o acordo final relativo à Alemanha, em que as potências vencedoras autorizaram e organizaram a reunificação das duas repúblicas alemãs. Os países vencedores também renunciaram à quaisquer direitos que teriam aos territórios alemães. Esse acordo é polêmico, já que países que se consideram merecedores de reparações não foram consultados, como a Grécia.
O terceiro acordo foi a Conferência de Paz de Paris (uma das várias com o nome), finalizada em 15 de outubro de 1946. Participaram os Aliados e os países europeus da aliança do Eixo: Hungria, Itália, Romênia, Bulgária e Finlândia. Esses Estados retomaram sua soberania internacional; tiveram que pagar indenizações de guerra; o fascismo foi proibido; e também mudanças territoriais, como a perda italiana de seu antigo império colonial e o reconhecimento de ganhos territoriais soviéticos contra a Romênia e a Finlândia.
Finalmente, em 8 de setembro de 1951, foi assinada o Tratado de São Francisco, para formalizar a paz com o Japão, então ocupado pelos EUA, assinado por 49 países. É consolidado o fim do Império do Japão; o país aceita se submeter à autoridade do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, para julgar crimes de guerra e contra a humanidade; o Japão é obrigado ao pagamento de indenizações, e, finalmente, perde seus territórios imperiais.
O problema é que, entre a rendição japonesa em 1945 e a assinatura, em 1951, muito mudou. No mundo e na região do Pacífico. Foi dada largada à Guerra Fria, que poderia ficar “quente” em qualquer momento. Diversos países estavam em processo de independência. Por exemplo, muitos dos pagamentos de indenizações japonesas foram feitos para a Cruz Vermelha, já que diversas populações vitimadas ainda estavam constituindo seus governos, tampouco faziam parte de seus antigos impérios coloniais, como a Indonésia.
E é nesse contexto de mudanças e do início da Guerra Fria que três países se ausentam de São Francisco. A URSS, por motivos óbvios, e que também ocupava parte dos territórios japoneses; a Coreia, que formalmente não existia e passava pelo conflito entre o sul e o norte; e a China, já que não se sabia qual governo deveria representar os chineses. A derrotada República da China, também conhecida como Taiwan, com pouca autoridade, ou a socialista República Popular da China, solução que desagradava os EUA. Essas ausências geram pendências que, até hoje, não foram resolvidas.
Pendências territoriais hoje
As relações entre China e Japão são problemáticas por desavenças históricas, incluindo feridas da Segunda Guerra Mundial, como o Estupro de Nanquim; também por disputas e tensões atuais, já que são as duas maiores economias da Ásia, disputando influência uma com a outra. Ao mesmo tempo, os laços entre as duas culturas são profundos. A influência chinesa no idioma e na religião no Japão são talvez os principais exemplos.
Uma questão territorial é um dos espinhos nessa relação. Cinco ilhotas, com uma área total de sete quilômetros quadrados, conhecidas coletivamente como Ilhas Senkaku, no Japão, ou Ilhas Diaoyu na China. As ilhas foram transferidas para o Japão após a derrota chinesa na Primeira Guerra Sino-Japonesa, em 1895. Essa transferência foi feita como parte de “Formosa e as ilhas adjacentes”. Formosa é a ilha de Taiwan, onde está a República da China.
Com o Tratado de São Francisco, o Japão perde a ilha de Formosa, que é transferida para a China. A primeira questão é: qual das duas Chinas? Além disso, apenas a grande ilha de Formosa ou a ilha mais “as ilhas adjacentes”, como no tratado de 1895? O entendimento japonês é de que se tratava apenas da ilha principal; o entendimento chinês, obviamente, é de que se trata de todo o conjunto.
Por quase três décadas o tema ficou em segundo plano, já que, até 1972, as ilhas estavam ocupadas pelos EUA, como parte do cordão estratégico que inclui a ilha de Okinawa, local de uma das maiores bases militares dos EUA fora de seu território. Após 1972 o tema retorna ao centro das relações. O Japão defende que as ilhas são suas e que o acordo de 1951 resolveria qualquer pendência. Já a China assinala a questão do acordo de 1895, sua posse histórica das ilhas e o fato de que, ao final da guerra, o Japão foi expressamente confinado ao seu arquipélago nominal, das quatro grandes ilhas.
As relações entre Japão e China (a continental) foram, em grande parte, normalizadas por um acordo de 1978; a posse das ilhas ficou pendente. Pode-se pensar que ilhotas tão pequenas são um assunto fácil de resolver uma vez que a questão de “qual China” fosse resolvida. A possibilidade de reservas de gás natural, a proximidade aos corredores comerciais do Mar do Sul da China e a fartura da pesca nas águas do entorno, entretanto, tornam a realidade bem mais complexa, com outros interesses envolvidos além de textos legais ou de relações históricas.
A disputa territorial entre Japão e a Coreia do Sul envolveu o uso da força. Novamente, a disputa é vista já na nomenclatura; trata-se de um conjunto de ilhotas e rochedos coletivamente chamados de Dokdo pelos coreanos e de Takeshima pelos japoneses. As ilhotas possuem uma fração de quilômetro quadrado de área. Sua insignificância prática era tal que não estavam presentes no texto do tratado de 1951.
Essa ausência, somada à falta de representação coreana na conferência, motivou o governo da Coreia do Sul à ocupar e administrar as ilhotas em 1954. A demanda coreana possui bases semelhantes ao caso chinês visto anteriormente: posse histórica, o fato de que foram ilhas conquistadas pelo império japonês e, por isso, justifica-se sua retomada ao fim da Segunda Guerra Mundial. A mera presença da silhueta das ilhotas no mapa coreano durante as conversas entre Kim Jong-un e Moon Jae-in já motivou protestos japoneses.
Tanto a república da Coreia do Sul quanto a do Norte concordam que as ilhotas são herança histórica coreana. Na prática elas são posse do Sul, idealmente são posse do povo coreano, em um eventual península unificada. Já para os japoneses, tratam-se de ilhas frequentadas por pescadores japoneses mesmo antes da anexação da Coreia ao império. A ausência de menção das ilhotas nos tratados mostraria, para os japoneses, que a Coreia agiu ilegalmente, usando a força.
Claro, as ilhotas não são protagonistas nesse caso. As relações entre a Coreia, anexada por décadas ao império japonês, e o Japão são bastante problemáticas. Mais de 70% da população sul-coreana tem uma visão negativa do Japão. O governo japonês não possui poder de barganha na península coreana; algo que une Norte e Sul é a rejeição ao passado de domínio japonês, que inclui a escravização sexual de mulheres coreanas pelas forças armadas japonesas, eufemisticamente chamadas “mulheres de conforto”.
Um tratado de paz entre Japão e Rússia
Chega-se ao caso das relações entre Japão e Rússia. A caminho de Davos, Shinzo Abe fez uma visita de trabalho a Vladimir Putin, em Moscou. Para Putin, os dois países poderiam aumentar o volume do intercâmbio comercial em financeiro em até 50%, chegando na casa dos trinta bilhões de dólares. Para o Japão, a Rússia é um gigante que pode servir de oportunidades de investimentos, fornecimento energético e, principalmente, um interlocutor de peso para outros temas no Extremo Oriente, como as relações com a China.
Já para os russos, uma aproximação com o Japão significa, além de um potencial cliente de gás e de petróleo, um parceiro tecnológico de ponta, que permitiria a modernização de diversos setores da economia russa. Exemplo infame foi o do início da década de 1980, com as quentes tensões entre a URSS e o governo Reagan. Mesmo assim, a empresa japonesa Toshiba vendeu tecnologia naval de ponta para os soviéticos.
As disputas entre japoneses e russos são duas. Em menor grau, a Ilha de Sacalina. Em 1875, os impérios do Japão e da Rússia fizeram uma troca: os japoneses cediam todas as reivindicações sobre a ilha de Sacalina em troca do arquipélago das ilhas Curilas. Em 1905, após a Guerra Russo-Japonesa, o Japão ocupou a metade sul da ilha, retomada pela URSS em 1945.
Desde então o governo japonês oficialmente não fez mais menções à ilha, embora alguns setores nacionalistas de sua sociedade considerem Sacalina como parte do Japão. Já as ilhas Curilas, as cedidas ao Japão em 1875, compreendem 56 ilhas que percorrem mais de mil quilômetros entre o arquipélago do Japão e a península de Kamchatka, no extremo oriente da Rússia. Com o acordo de 1875, todas as ilhas foram incorporadas ao Japão.
Com essa incorporação veio a assimilação do povo Ainu, os habitantes nativos das ilhas e também da ilha de Hokkaido; esse processo já foi denunciado por ativistas indígenas como um genocídio, que chamam tanto japoneses quanto russos de invasores. Até 1945, todas as ilhas permaneceram em mãos japonesas. Com a entrada soviética na guerra contra o Japão, elas foram ocupadas e a ausência de Moscou no tratado de paz deixou o tema pendente.
Curiosamente, nesse tema o Japão que afirma ter o Direito internacional do seu lado, já que a invasão soviética de 1945 teria sido uma violação do acordo de neutralidade entre os dois Estados. O Japão também afirma que as quatro grandes ilhas mais ao sul não deveriam fazer parte do grupo e são parte do lar ancestral e histórico japonês; as ilhas Habomai, Shikotan, Kunashir e Iturup. Esse caso permite otimismo de uma resolução no futuro em breve.
Além do proveito mútuo de uma total normalização das relações entre Japão e Rússia, existe um acordo preliminar sobre o tema. Em 1956, soviéticos e japoneses assinaram a declaração conjunta que restabeleceu as relações bilaterais após a guerra; na prática, um acordo de paz, embora sem resolver as pendências territoriais. No período, os soviéticos aceitaram a entrega de duas das quatro ilhas disputadas, as mais ao sul Habomai e Shikotan. As contingências da Guerra Fria, entretanto, impediram esse acordo.
Pelo fato da região ser uma das fronteiras entre a Rússia e a OTAN, as ilhas Curilas, mesmo pequenas e com menos de vinte mil habitantes, contém forte presença militar russa. Esse é certamente um dos temas que dificulta um acordo final. O otimismo para um acordo ainda em 2019, entretanto, é justificado, e endossado por declarações tanto de Putin quanto de Abe. Quando esse tratado for assinado teremos mais um pequeno avanço rumo ao final completo da Segunda Guerra Mundial.