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O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araujo, em coletiva de imprensa. Foto: Sergio LIMA/AFP
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araujo, em coletiva de imprensa. Foto: Sergio LIMA/AFP| Foto:

Ernesto Araújo foi empossado como o novo Ministro de Relações Exteriores do Brasil e seu discurso chamou a atenção de diversos espaços na mídia. No caso de uma coluna dedicada ao tema da política internacional, como essa, obviamente o tema apareceria por aqui. Alguns pontos abordados amplamente em outros espaços serão deixados de lado, para evitar uma discussão repetitiva e em perseguição à própria cauda; as referências eruditas, populares e idiomáticas do chanceler, a quantidade de referências de exaltação ao presidente, dentre outros. Outros dois aspectos no discurso necessitam de textos próprios e dedicados, pela sua complexidade: o tão evocado conceito de “globalismo” e a suposta atrofia recente da política externa brasileira. O foco será a substância, a trama que sustenta as ideias, do discurso de posse.

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Deve-se notar a interessante vibração do discurso de posse, além da convicção ideológica que pode roubar a atenção em um primeiro olhar. Estava presente uma autocrítica valiosa ao Itamaraty e o comportamento por vezes engessado ou carreirista de seus quadros e tradições, a ideia de uma renovação, distanciando do velho estereótipo dos punhos de renda; por vezes, infelizmente, um estereótipo real. Outro ponto interessante e atualíssimo é a aberta defesa de renovação, por vezes chamada de reforma, da Organização Mundial do Comércio. A visão de um Itamaraty guardião de uma brasilidade, aos moldes do que é exposto por Synesio Sampaio Goes Filho em sua obra Navegantes, bandeirantes, diplomatas, também é cativante. Por mais que tenha sido feita uma caricatura do discurso, pela vasta gama de citações, esses pontos não podem ser subestimados.

Todas as ideias expostas, entretanto, tanto as valiosas quanto as nem tão valiosas assim, são baseadas em uma substância formada de pilares criados, idealizados, mitológicos, além de contraditórios. E isso é posto aqui de maneira impessoal, não tendo a pessoa de Ernesto Araújo como alvo, mas com a finalidade de discutir ideias expostas por alguém que representará o Brasil e os brasileiros. A autoridade do cargo vêm acompanhada da exposição, e a crítica é derivada tanto da liberdade intelectual quanto do desejo do melhor. Para o chanceler, como colocado em seu discurso, a verdade seria um conceito orgânico e vivido, não algo factual, “técnico e frio”. O que não se pode é ignorar o que é factual, por mais frio que soe, em nome de um mito, por mais empolgado que seja a aventura.

Um dos mitos advogados pelo chanceler é a de um dos problemas do mundo seria uma oikofobia, do grego oikos, oikía, o lar, como explicado pelo próprio. “Oikofobia é odiar o próprio lar, o próprio povo, repudiar o próprio passado.” Uma confusão feita pelo chanceler, e cada vez mais comum, é o uso dos termos patriotismo e nacionalismo como intercambiáveis. Quando significam coisas diferentes. Ernesto Araújo cita Clarice Lispector ao defender um nacionalismo, e deixa o termo subentendido em outros momentos; além disso, defendeu o nacionalismo com eloquência em recente artigo em inglês. Na breve definição de Charles de Gaulle, “O patriotismo é quando pões primeiro o amor a teu povo; o nacionalismo, quando pões primeiro teu ódio contra outro povo”.

O patriotismo é a valorização do que é seu, do que é originário da tua comunidade, do que é parte da formação da sua individualidade. É um ato de defesa. É sentir que o rio de tua aldeia é mais belo que o Tejo. E tudo isso enquanto não diminui a beleza do estrangeiro, o valor do outro. É saber que tanto jabuticabas brasileiras quanto mirtilos europeus são saborosos; a diferença é que a jabuticaba é da minha terra. O nacionalismo é ver em seu povo e sua cultura uma primazia chauvinista, um direito de governar, subjugar ou diminuir o outro. É dizer que o Tejo é feio e que mirtilos são insípidos por não serem jabuticabas. Repito as palavras de Rio Branco citadas por Ernesto Araújo: “Ubique Patriae Memor, Onde quer que seja, eu me lembro da pátria.”

Rio Branco era um patriota, não um nacionalista. Quando o chanceler aponta a existência de uma suposta oikofobia no mundo atual, não se trata de odiar o próprio lar e meramente “repudiar o próprio passado”. O patriotismo não é ódio, o nacionalismo que o é. E se trata da constatação e consolidação de aprendizados históricos. É para isso que a História, com H maiúsculo, serve. Lembrar as lições que muitas vezes deseja-se esquecer. O nacionalismo está no cerne da origem das duas destrutivas guerras mundiais que o século XX viu. Como não repudiar atrocidades e barbaridades cometidas sob tais bandeiras no passado?

Não se pode cometer todos os erros possíveis na vida, daí a importância do aprendizado de erros dos outros. O que inclui os do passado. Não fazê-lo é distanciar-se da História e desejar um panegírico, em que covardes massacres são travestidos de gloriosas vitórias. É revisar a História para apagar o que não é conveniente aos homens do poder de hoje. Algo similar ao feito na Polônia e na Hungria sobre suas trajetórias no século XX, como apontado aqui nesse espaço, em um nacionalismo de conveniência, que critica uma ordem europeia enquanto sorve seus recursos. E a citação aos dois países cabe pois foram alvo de admiração no discurso do novo chanceler. Uma admiração descabida, indo além.

E não, esse aprendizado da História não se trata de medo, já que “o mito ensina a não ter medo”; mitos podem ensinar muitas coisas, e também podem mentir, podem omitir, podem querer apagar. Se a verdade é o “desesquecimento”, como coloca o chanceler, então, desesqueçamos a morte e a destruição causada em nome de certas ideias, o avanço proporcionado por outras ideias e propostas. Deve-se desvelar a mitologia que norteia certas ideias. Ernesto Araújo continua e apresenta que o outro problema do mundo atual seria a teofobia, o ódio contra Deus. Curiosamente, no mesmo momento, o chanceler afirma que esse ódio contra Deus é “proveniente sabe-se lá de onde”.

Uma base pouco sólida para uma afirmação tão contundente. Com a licença do chanceler, é necessário trazer uma base de dados mais “técnica e fria”. O número de pessoas religiosas no mundo está crescendo, não o contrário, segundo pesquisa do Pew Research Center de 2015. O cristianismo, professado pelo chanceler, somadas todas suas vertentes, é a maior religião do mundo. É a religião que mais cresce em todo o continente americano e também na África sub-saariana. Dos dez países com maior taxa de fertilidade do mundo, cinco são de ampla maioria cristã e dois são divididos ao meio entre cristãos e muçulmanos. Isso desconsiderando, é claro, outros grandes grupos religiosos, como os hindus. Oras, um dos lugares onde o cristianismo mais cresce é na China!

A ideia de um “ódio à Deus” vêm de uma percepção superficial e restrita às metrópoles ocidentais, que não sobrevive à um olhar mais preciso. É uma manobra ideológica para antagonizar o secularismo e o racionalismo científico que interroga a natureza. O próprio secularismo que não é uma conspiração global para destruir Deus ou a religião, mas consequência e fruto de séculos de matança intra-cristandade europeia, católicos versus protestantes. O secularismo é um instrumento de liberdade religiosa, não de repressão. É uma garantia de que os cidadãos podem professar sua fé sem sofrerem coerção. O primeiro Estado fundado com liberdade religiosa, por esse exato motivo, foi os Estados Unidos da América, objeto de justa admiração por parte do chanceler em seu discurso.  

Além disso, não deixa de ser curioso ver, em um mesmo texto, uma valorização do nacionalismo coexistindo com a defesa da religião e de Deus. Novamente, ao se olhar para a História, um fenômeno muito comum foi o uso do nacionalismo como uma religião civil, a substituição do culto ao Divino pelo culto à bandeira, a redenção não pela metafísica da fé, mas pelo sacrifício em nome da bandeira contra os inimigos da nação. Outra ironia é ver que o mesmo Ernesto Araújo que aponta uma teofobia é o que tece elogios ao Grupo de Visegrado, cujos quatro países incluem três dos cinco menos religiosos de toda a Europa, Hungria, Eslováquia e a recordista mundial Chéquia, onde 76% da população não tem religião.

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A visão de Ocidente de Ernesto Araújo, baseada na de Olavo de Carvalho, citado em seu discurso, é uma visão idealizada, fantasiosa, que combina mais com um livro de Tolkien do que com uma análise da História. Essa visão já havia sido transmitida em seu artigo ‘Trump e o Ocidente’ e foi repetida em seu discurso. A ideia de uma guerra cultural entre Ocidente e Oriente, evocando a batalha de Salamina, onde gregos derrotaram os persas; a visão de um processo aventureiro e vibrante de expansão ocidental, empunhando a Cruz e na Espada no espírito cruzadístico. Nesse sentido, Ernesto Araújo evocou São Sebastião e a batalha de Alcácer Quibir, com, talvez, uma menção implícita à Shakespeare em Henrique V: “Nós não nos lembramos das pessoas que ficaram em casa”.

Por qual motivo a batalha de Salamina tornou-se um mito, a visão de um Ocidente derrotando o Oriente? Pois pouco sabemos sobre a batalha em si, enquanto outras batalhas, tão importantes quanto, como Plateia e Maratona, são bem documentadas. O desconhecido abre espaço para a criação, para a fantasia, para os feitos épicos que são arruinados pela frieza técnica dos documentos e das fontes históricas. Citar Salamina abre mais espaço para entusiasmo do que lembrar dos outros embates. E as guerras entre gregos e persas ilustram, de forma não-intencional e simbólica, a diferença entre patriotismo e nacionalismo. Os gregos triunfaram ao defender o solo sagrado de sua pátria; quando partiram para a conquista do império aquemênida, falharam. Enfraquecidos, foram subjugados pelos macedônios de Filipe II e seu filho, Alexandre.

Se existiu um Ocidente triunfante e que governou o mundo, esse Ocidente não foi o de Ernesto Araújo e a visão idealizada expressa de maneira similar por outras pessoas que compartilham de suas visões. O Ocidente da Cruz e da Espada demorou séculos para reconquistar a península Ibérica; foi derrotado na Terra Santa; foi derrotado em Marrocos, na citada Alcácer Quibir; mal conseguiu penetrar no continente africano; somente conquistou os impérios Inca e Asteca pois contou com o apoio de rivais locais; foi derrotado pelos mapuche em Curalaba em 1598 e viu a ruína financeira pela revolta dos chichimeca; foi expulso do Japão dos xoguns; somente deteve os turcos às portas de Viena em 1683, após séculos de derrotas e antes de séculos de dominação otomana no sul da Europa.

Sim, o espírito cruzadístico é um fenômeno real, de suma importância para a expansão ultramarina, as descobertas e as chamadas grandes navegações. A expansão da fé foi elemento essencial para os impérios ibéricos. Esse Ocidente, entretanto, foi enfrentado de igual para igual, por outras espadas e outras fés, e nem sempre triunfou. Ao contrário, acumulou derrotas e retrocessos. A ideia de um Ocidente que governa o globo remonta ao século XIX e teve na cruz apenas um de seus elementos, habitualmente introdutório. O Ocidente que governou o mundo foi o Ocidente da Revolução Industrial, do método científico, da racionalização das relações e da produção, pós-Iluminismo.

E isso é dito sem juízo de valor. Novamente, não se deve esquecer convenientemente erros do passado, como os genocídios europeus no continente africano, como no Congo belga e na Namíbia alemã. Não se trata de um balanço da expansão ocidental no século XX, ou de um julgamento moral. É apontar que o Ocidente apoteótico que conquistou a Ásia e a África é baseado não na versão idealizada de Ernesto Araújo, mas em ideias e abordagens de mundo que são díspares dessa visão. O Japão foi aberto não pela cruz ou pela espada, mas pela supremacia tecnológica e científica da marinha dos EUA. A Índia não foi submetida pelos portugueses que chegaram primeiro, mas pelos britânicos que dominavam a indústria, a inovação e o capital.

É nesse século XIX do vapor e do aço que pensadores como Tocqueville e Stuart Mill vão defender a força civilizadora do comércio. Ernesto Araújo aponta que irá promover comércio e valores, e que “Um dos instrumentos do globalismo (…) é espalhar que, para fazer comércio e negócios, não se pode ter ideias nem defender valores.“. Oras, a ideia de que o dinheiro e o lucro estão acima de valores é proveniente do capital, como as grandes empresas que omitem que seus produtos para bebês possuem substâncias cancerígenas em nome do valor das ações. Uma visão de mundo integrado aponta justo para o caminho contrário, que o comércio permite a troca de ideias e a inserção em uma ordem de valores. Já escreveu Tocqueville: “O comércio é o inimigo natural de todas as paixões violentas. O comércio ama moderação”.

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Finalmente deve-se apontar uma contradição no discurso de Ernesto Araújo, e não só no dele. Ele critica o que, em sua visão, seria um globalismo que deseja impor ou apagar valores, impedir nações de existirem como tal. “O globalismo se constitui no ódio, através das suas várias ramificações ideológicas e seus instrumentos contrários à nação”. Ao mesmo tempo, Ernesto Araújo aponta que o Itamaraty, sob sua gestão, defenderá valores e “os direitos básicos da humanidade”. O chanceler cita a questão do aborto de gestação, o “direito de nascer”. Esse é um debate presente nas Relações Internacionais e também no Direito: se existem, ou não, direitos universais e inalienáveis.

A contradição está em, ao mesmo tempo, defender a existência de direitos de toda a humanidade e a de que a nação é totalmente soberana contra os “instrumentos do globalismo”. Se uma nação determinar que é de seu interesse uma maior permissividade do aborto de gestação, Ernesto Araújo vai se pronunciar em defesa desse “direito básico da humanidade”? Isso não seria, por sua vez, uma interferência em assuntos de outra nação? E se uma nação determinar que é da sua cultura a mutilação sexual do corpo feminino, o infanticídio de crianças nascidas com alguma deficiência, tal qual os antigos espartanos, ou o uso de castigos físicos que violem a integridade do corpo humano? Essas nações possuem esse direito contra os “instrumentos do globalismo” ou estarão violando direitos básicos da humanidade? Como se comportaria Ernesto Araújo? E, antes de qualquer acusação de relativismo moral, adianta-se que esse colunista acredita em direitos humanos básicos e universais, que nenhuma nação pode atropelar.

Como alento, interessante notar que o chanceler aponta que “muito se escuta que o brasileiro não se interessa por política externa” e que isso estaria em caminho de ser revertido, sendo fruto de circunstâncias anteriores. Como alguém que aborda o tema por alguns anos, processo que culminou com o convite para escrever aos leitores desse valoroso jornal, ofereço todo meu apoio ao desejo do chanceler. É cada vez mais importante que os cidadãos brasileiros compreendam cada vez mais sobre o papel de seu país no mundo e sobre o que ocorre no cenário internacional. Algo que afeta diretamente sua vida, muitas vezes sem saber. Que esse interesse cresça cada vez mais, com cada vez mais insumos para a prática dessa “disciplina arcana”. É para isso que estamos aqui. 

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