Nas últimas semanas foram intensificadas notícias sobre uma possível expansão do arsenal nuclear chinês, incluindo a construção de novos silos para mísseis balísticos intercontinentais. Ambos os relatos são plausíveis, sem dúvidas, mas é curioso o momento em que eles surgem na opinião pública, especialmente nos EUA e na Europa Ocidental.
Tais notícias podem ter, talvez, outros propósitos do que apenas o de relatar acontecimentos, e serem, intencionalmente, uma maneira de influenciar o debate público sobre a compra de armamentos. Uma tática que passa longe de ser nova.
As evidências para esses relatos são provenientes principalmente de dois centros de pesquisa. Um é a Federação de Cientistas Americanos de Washington, FAS, na sigla em inglês, e o outro é o Centro James Martin para Estudos de Não Proliferação, da Califórnia. Ambos são think tanks da sociedade civil, sem vínculo direto ou explícito com o governo dos EUA. O primeiro, inclusive, foi fundado pelos cientistas do Projeto Manhattan, que desenvolveu as primeiras bombas nucleares, movidos pelo desejo de maior transparência sobre as atividades nucleares.
Ambos os centros relatam que imagens de satélite mostram a construção chinesa de mais silos para mísseis balísticos intercontinentais. Silos são estruturas reforçadas abaixo do nível do solo para o lançamento de foguetes, uma espécie de “plataforma de lançamento enterrada”, para maior proteção e redução de visibilidade.
O governo chinês estaria construindo silos para 110 mísseis no deserto de Xinjiang, no extremo oeste do país, perto da fronteira com o Cazaquistão. A região, inclusive, da minoria uigur, que está no centro de uma guerra de acusações entre os EUA e a Europa de um lado, e a China do outro.
A mesma FAS afirma que as novas construções seriam “a expansão mais significativa do arsenal nuclear chinês até hoje”. Assim que os estudos foram publicados na grande mídia nos EUA, o perfil oficial do Comando Estratégico dos EUA no Twitter, postou que “esta é a segunda vez em dois meses que o público descobre o que dizemos o tempo todo sobre a crescente ameaça que o mundo enfrenta e o véu de sigilo que o cerca". O Comando Estratégico é um dos onze comandos da defesa dos EUA, responsável, dentre outras coisas, justamente pela política de dissuasão nuclear. No início do ano, seu comandante previu que o arsenal nuclear chinês deve dobrar na próxima década.
Arsenal chinês
Esses são alguns dos fatos recentes, agora a análise do que eles significam. A China está aumentando seu arsenal nuclear? Possivelmente. Mais preciso seria dizer que o país está expandindo suas opções nucleares. Construir novos silos não significa, necessariamente, novos mísseis. Tanto os EUA quanto a ex-URSS, durante a Guerra Fria, construíam muito mais silos do que o necessário, como forma de dissuasão. Se um país tem dez mísseis e dez silos, o inimigo sabe como atacar preventivamente. Agora, se um país possui dez mísseis e cem silos distribuídos, como arriscar?
De qualquer maneira, o arsenal nuclear chinês é ínfimo perto dos arsenais dos EUA e da Rússia. Isso não quer dizer que Washington não deva preservar seus interesses e observar com cuidado um crescimento do poderio chinês, mas é imperativo colocar as coisas em perspectiva.
A “crescente ameaça que o mundo enfrenta” é especulada em cerca de 350 ogivas nucleares, desenvolvidas ao longo de 45 testes nucleares chineses. Os britânicos realizaram o mesmo número de testes e declaram ter 225 ogivas. A França tem um arsenal de 290 ogivas e realizou 210 testes em sua História. Três arsenais com números similares.
Índia e Paquistão possuem, cada um, cerca de 150 ogivas nucleares, a Coreia do Norte possui menos de cinquenta e Israel possui algo entre cinquenta e cem ogivas. Ou seja, essas seis potências nucleares somadas possuem um máximo de 1300 ogivas nucleares. São obviamente estimativas, já que não se trata do assunto mais transparente do mundo. E esse número é menor que as 1700 ogivas nucleares ativas dos EUA, cujo arsenal total é de 5550. A Rússia, herdeira do arsenal soviético, possui mais de seis mil ogivas totais, com 1600 ativas. No caso desses dois países, devido a fiscalização mútua entre eles, os números dos arsenais são mais precisos.
No território continental dos EUA estão cerca de quinhentos silos para mísseis balísticos intercontinentais, e o número russo pode ser o dobro, dada a extensão territorial.
Em outras palavras, 90% do arsenal nuclear do mundo está na mão de duas potências e ao menos cinco países possuem arsenais que garantem, com sobras, a completa obliteração do seu inimigo e, junto com ele, a capacidade de existência de vida na Terra por algumas décadas. Isso desconsiderando hipóteses em que apenas uma bomba nuclear poderia destruir essa existência, como uma explosão potente o suficiente ao ponto de incendiar a atmosfera ou uma bomba coberta de cobalto que contamine toda a superfície.
Valorizar ameaças
Mais importante do que os grandes arsenais, EUA, Rússia e China possuem tríade nuclear, a capacidade de usar armas nucleares via três métodos: mísseis balísticos intercontinentais, bombardeiros estratégicos e mísseis balísticos lançados por submarinos. Terra, ar e mar. Isso garante a capacidade de contra-ataque mesmo em caso de ataque nuclear do inimigo.
Se essas três potências possuem capacidade de dissuasão nuclear e o arsenal chinês é uma fração dos outros dois arsenais, o que poderia explicar essa inflamação do debate público dos EUA sobre armamentos estratégicos? A economia do país não poderia ter outras prioridades? A posição dos EUA como maior potência militar do mundo está mais do que garantida.
Uma tática antiga em disputas internacionais é aumentar, supervalorizar uma ameaça, para convencer o seu público de que ele precisa prestar mais atenção em temas de armamentos. Ao final de julho, representantes dos governos dos EUA e da Rússia se encontraram em Genebra.
O propósito é construir as bases para um novo acordo de controle de armamentos nucleares entre as duas potências, "criar uma base para futuro controle armamentista e medidas de redução de riscos", e a segunda reunião está prevista para setembro. Não é segredo, desde Trump, que o governo dos EUA deseja que a China esteja na mesa e seja parte dos acordos de controle de armamentos estratégicos.
O governo chinês, obviamente, se distancia, afirmando que suas 350 ogivas não necessitam estar na mesma negociação que as milhares de ogivas dos dois antigos rivais da Guerra Fria. Criar uma base na opinião pública de que a China é uma ameaça nuclear cada vez maior e mais perigosa é uma maneira de garantir o apoio popular a eventuais atos e pressões direcionados aos chineses, com o objetivo de trazer a China para a mesa. Também é uma maneira de buscar apoio dos pagadores de impostos para novos, e mais caros, projetos armamentistas. “Precisamos gastar bilhões de dólares em armamentos senão a China vai nos ultrapassar”. Quando, novamente, ela está longe disso.
Caso registrado
“Isso é teoria da conspiração da coluna”, pode dizer um leitor mais cético. Outro, mais bem humorado, pode dizer que essa é a trama do filme sátira Top Gang, estrelado por Charlie Sheen, em que um empresário sem escrúpulos quer sabotar os aviões da marinha dos EUA para garantir que o governo compre o seu novo e caríssimo caça. Não se trata nem de um e nem de outro, palavra dada.
Inclusive, com casos documentados. Um relativamente recente ocorreu nos anos de 2002 e de 2004. Por duas vezes, a força aérea dos EUA foi derrotada pela força aérea indiana em exercícios conjuntos, chamados de Cope India. Notícias abundaram sobre as “sovas” que os indianos impuseram, usando aviões de origem russa.
A repercussão negativa foi tamanha que o Congresso dos EUA exigiu explicações. Como a maior máquina de guerra do planeta foi derrotada em um exercício militar, supostamente de goleada?
Ao mesmo tempo, os bilionários projetos para os dois novos aviões de combate dos EUA, os atuais F-22 e F-35, que andavam ameaçados de interrupção e de cortes de fundos, ganharam sobrevida, quase por “milagre”. Afinal, novas armas seriam necessárias para evitar tais “goleadas” no futuro. Em 2006, o projeto do F-22 ganhou até mais verbas, e os dois aviões se salvaram de compartilhar o destino do projeto de helicóptero Comanche. Depois de desperdiçar sete bilhões de dólares, o projeto foi cancelado em 2004.
Valorizar a ameaça chinesa é também uma maneira de garantir orçamentos favoráveis para as forças armadas dos EUA. Mas por mais que o poderio nuclear chinês seja crescente, ele nem de perto é uma ameaça para os EUA. Isso é fato.
Todo dia, centenas de analistas muito bem capacitados trabalham para as principais forças armadas do planeta, decifrando novas informações, diagnosticando situações e fornecendo possíveis caminhos de ação. E a opinião pública é parte importante desses cálculos, com a necessidade de transmitir a mensagem de quem são amigos e inimigos, incluindo a valorização dessa ameaça.
A ampla divulgação dos novos silos de mísseis chineses é apenas um componente dessa velha tática e nem de perto significa que estamos prestes ao conflito nuclear.