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No último sábado, dia 20, em uma cercania de alto padrão de Moscou, morreu Darya Dugina, filha do filósofo neofascista russo Alexandr Dugin, após a explosão de uma bomba em seu carro. Circularam imagens pesadas mostrando Dugin perto do carro em chamas. Posteriormente, ocorreu uma troca de acusações e foram levantadas diversas possibilidades sobre o atentado. Principalmente, entretanto, Dugin é muitas vezes chamado de “guru de Putin”, “cérebro de Putin”, “ideólogo do Kremlin” e termos correlatos. A questão é que esses rótulos são inadequados e podem até atrapalhar análises e interpretações das ações do governo russo.
A primeira especulação é que o atentado visava o pai, não Darya Dugina. Ele, inclusive, era o proprietário do veículo. Na segunda-feira, dia 22, a agência de inteligência federal da Rússia, o FSB, afirmou que o "crime foi preparado e cometido por serviços especiais ucranianos". A responsável seria uma cidadã ucraniana chamada Natalya Vovk, supostamente ligada ao grupo neonazista Batalhão Azov. Ela teria chegado à Rússia em julho, junto da filha de doze anos de idade, e passou um mês vigiando Dugina e preparando o ataque. Após o assassinato ela teria fugido de carro para a Estônia, dando mais um elemento internacional ao atentado.
Já Mikhailo Podoliak, conselheiro do presidente da Ucrânia, negou a participação do país na morte de Dugina. Ele afirmou que a explosão foi provavelmente resultado de tensões internas entre "diversas facções políticas" da Rússia. Nesse sentido, o ex-parlamentar russo Ilya Ponomarev, que vive exilado em Kiev desde 2019, praticamente reivindicou o atentado em nome de um suposto grupo chamado Exército Republicano Nacional que ele integra, e que "o ataque inaugurou uma nova página da resistência russa a Putin.".
Hipóteses e Dugin
O assassinato está longe de ser desvendado, quanto mais publicamente. Pelos atores e circunstâncias envolvidos, certamente levantará muitas hipóteses e suspeitas. Assassinada por ucranianos por ser filha de um ideólogo nacionalista russo? Ou por ser ela também uma nacionalista russa, que produziu material de propaganda em territórios ucranianos ocupados? Por opositores do Kremlin? Desafetos de Dugin? Talvez até uma bandeira falsa para justificar algum expurgo? Uma grande farsa e ela está viva em algum lugar? Adeptos dessa possibilidade vão apontar para o fato de que o corpo teria ficado “totalmente desfigurado”, segundo a imprensa russa.
Enquanto só se pode esperar por maiores e novas repercussões da morte de Darya Dugina, o que se pode, e é importante, abordar é a suposta importância de Alexandr Dugin. O leitor mais antigo e habitual sabe que temas russos e do espaço pós-soviético são bastante presentes aqui no nosso espaço. Da Rússia propriamente dita até a política do Quirguistão, já vimos de muita coisa aqui, entretanto, nunca passamos por Dugin. O motivo é simples: ele muito provavelmente não é tão influente quanto se diz, ao menos não em relação ao governo russo e a Vladimir Putin.
O que Dugin possui de maneira indubitável é capilaridade no Estado russo. Suas obras, como o livro Fundamentos de Geopolítica, são lidas nas academias militares russas. Ele é amigo de generais e possui trânsito entre políticos, presente em eventos importantes. Inclusive, ele e sua filha estavam em um festival nacionalista russo chamado Tradição antes da explosão. Dugin já foi oficialmente conselheiro de alguns políticos russos, como Gennadiy Seleznyov, que presidiu o parlamento russo, e também já teve posições acadêmicas, além de ser muito presente na mídia.
Dugin também é bastante articulado dentre a extrema-direita mundial, especialmente na Europa, ele mesmo se considerando um articulador desses diversos movimentos de extrema-direita contra a “decadência moral”, Satanás, homossexuais, o liberalismo, dentre outros fantasmas. Inclusive, nesse papel auto-ungido de coordenador da extrema-direita global, seria muito vantajoso ele se propagar como alguém próximo de Putin ou detentor de alguma autoridade concreta. Vantajoso também, potencialmente, do ponto de vista financeiro.
Ter capilaridade no Estado russo e boas conexões são uma coisa. Possuir contatos e ser bem visto por aliados internacionais são outra coisa. E ambos estão a um pélago de distância de ser alguém próximo de Vladimir Putin. É muito difícil dizer qual seria essa proximidade. Inclusive, é possível dizer que é baixa, que a influência de Dugin no Estado russo é muito mais indireta do que ser alguém para quem Putin telefona pedindo conselhos. Eles nunca foram vistos juntos, Dugin nunca teve um cargo oficial e, desde 2014, é um crítico aberto de Putin, afirmando que a Rússia não deveria ter então parado na anexação da Crimeia, levando a cabo o processo que realiza atualmente.
Caricatura e outros nomes
Classificar Dugin como "ideólogo de Putin" é um problema que atrapalha a compreensão da Rússia. Além de não sabermos de fato qual seria a extensão da sua influência direta, ele é uma figura caricata, com seu visual meio Rasputinesco. Um dos efeitos desse erro é o de apontar o dedo para essa figura e pensar "Olha que homem bizarro que aconselha o Putin, é um país de doidos, um governo de malucos", nublando interpretações e análises melhor embasadas sobre a Rússia. Outro efeito é esconder os principais, e de fato, conselheiros de Putin em diversos campos.
Pensando na guerra da Ucrânia, o principal deles é Sergey Karaganov, importante acadêmico, conselheiro de Putin e amigo do ministro de Relações Exteriores, Sergei Lavrov. Ele é formulador da Doutrina Karaganov, que sustenta o papel da Rússia no espaço pós-soviético, interpretando esse espaço como uma esfera de influência onde a Rússia pode, e deve, agir em defesa da identidade russa e dos direitos das populações russófonas. Essa doutrina baseou praticamente todas as ações russas nos últimos vinte anos. Ele foi um dos autores do famoso discurso de Putin na Conferência de Munique de 2007.
Na visão ideológica sobre a identidade ucraniana, que seria inexistente, Vladislav Surkov é essencial para entender a perspectiva do atual governo russo. Ex-vice-primeiro-ministro russo e conselheiro da presidência de 2013 a 2020, ele foi um dos principais formuladores do Rússia Unida e do Putinismo como um movimento de massas. Pouco antes de sua demissão, ele escreveu que "a coerção pela força é o único método que historicamente provou sua eficácia em temas ucranianos. Não acho que algum outro será inventado.". Parece familiar, não?
Supostamente ele foi colocado em prisão domiciliar no início do ano, por ter desviado verbas nos últimos anos que seriam destinadas a criar uma rede pró-Rússia na Ucrânia. Finalmente, a historiadora e ex-parlamentar Natalya Narochnitskaya, em um caso de provável influência indireta. Talvez não tão próxima de Putin, mas com capilaridade no Estado russo, especialmente entre diplomatas. Quando Putin critica a federalização do antigo Império Russo por Lênin ou defende Pedro, o grande, por sua "unificação de terras russas", é a obra de Narochnitskaya ganhando eco.
Ela renega o internacionalismo do período soviético e busca resgatar o que chama de princípios russos autênticos da política externa. Ou seja, os princípios da política externa do Império Russo, como o pan-eslavismo e o Cristianismo Ortodoxo. Para muitos leitores, esses três nomes citados podem soar como uma novidade. Alguns, entretanto, talvez se lembrem que citamos esses três indivíduos na primeira colaboração aqui na Gazeta, ainda em março de 2018.
Ao tratar de política internacional, é muito importante deixarmos as caricaturas de lado. Por vezes é difícil, mas é necessário. E classificar Dugin como “cérebro de Putin” é uma caricatura. Confortável, mas superficial, que impede de buscar as influências mais sólidas desse governo. Nada disso implica em dizer que Dugin é insignificante ou que ninguém lhe dá ouvidos, mas frisar que existem evidências que apontam em outros sentidos. Principalmente, que superestimar a importância de Alexandr Dugin atende aos interesses de especificamente uma pessoa: o próprio Alexandr Dugin.
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