Nos últimos dias estão sendo realizados referendos separatistas nos quatro oblasts ucranianos ao menos parcialmente controlados pela Rússia. Nos oblasts de Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhia, em suas partes controladas pelos russos, administradores pró-Rússia realizam um voto em que a população será supostamente consultada se desejam fazer parte da Federação Russa. Os referendos possuem apoio do governo Putin, mas, provavelmente, não terão o efeito desejado, ao menos internacionalmente.
A Rússia busca repetir o que fez em 2014, na península da Crimeia. Em 21 de fevereiro daquele ano, no contexto dos protestos e manifestações da Euromaidan, o governo da Crimeia, então uma região autônoma da Ucrânia, pediu por “proteção” da Rússia contra supostas agressões de ucranianos; o governo ucraniano classificou a ação como ilegal. Manifestações tanto pró quanto anti-Rússia aconteceram na Crimeia. Tropas russas de elite sem identificação tomaram as principais instalações militares na Ucrânia. Diversas autoridades ucranianas na Crimeia desertaram para a Rússia, como o então comandante da marinha ucraniana.
No dia 16 de março de 2014 foi realizado um referendo na Crimeia que decide pela independência da península e solicitação de adesão à Rússia. O voto foi realizado sob ocupação, o que levantou críticas internacionais, além de questionamentos legais. Após o referendo, o governo russo anunciou que consideraria a Crimeia como parte de seu território e, dois dias depois, incorporou a autoproclamada República Autônoma da Crimeia à sua federação.
Fato consumado
A argumentação russa, com certo grau de cinismo, afirmava que a independência do Kosovo em relação à Sérvia foi idêntica, abrindo um precedente. Consequentemente, para a Rússia, os Estados que reconheceram a independência do Kosovo não teriam autoridade para questionar a independência da Crimeia. Nesse caso também pesa a histórica aliança entre Rússia e Sérvia, com Moscou sendo a principal potência que criticou o processo de independência kosovar.
O governo dos EUA, então sob Barack Obama, não reconheceu a anexação da Crimeia e impôs sanções contra a Rússia. Outros governos seguiram posturas críticas, embora sem ações concretas, como os Estados da Europa continental. Alguns países chegaram ao ponto de reconhecer a posse russa da Crimeia. A maioria do mundo, entretanto, não reconheceu juridicamente, mas, na prática, aceitou a posse russa da Crimeia.
Seja por laços históricos, seja por ser uma potência nuclear, a anexação foi dada como fato consumado, um fait accomplis. Essa postura pode ser resumida nas declarações do então comandante da marinha alemã no início de 2022, Kay-Achim Schönbach. Antes de ser demitido por tais declarações em uma palestra, ele disse, dentre outras coisas, que a Crimeia “era passado” e que a Ucrânia nunca conseguiria retomar a península.
Os novos referendos, por outro lado, estão sendo amplamente condenados, mesmo por aliados de Moscou. Ninguém está disposto a “tolerar” uma eventual realidade, ao contrário do caso da Crimeia. Como esperado, países como os EUA ou o Reino Unido classificaram os votos como farsas, que não serão reconhecidos e que a integridade territorial da Ucrânia precisa ser respeitada. Já a Turquia, que tenta uma posição equidistante entre Rússia e Ucrânia, se projetando como mediadora do conflito, respondeu que “tal fait accomplis ilegítimo não será reconhecido pela comunidade internacional. Pelo contrário, vão complicar os esforços para revitalizar o processo diplomático e aprofundar a instabilidade”.
Isolamento
Países como China e Índia falaram apenas do respeito à integridade territorial ucraniana. A Sérvia, aliada russa, afirmou que não vai reconhecer os referendos. Nesse caso, inclusive, motivada por seu próprio interesse, já que reconhecer a independência de um oblast ucraniano criaria um precedente contra sua própria argumentação em relação ao Kosovo. O Cazaquistão, que solicitou ajuda russa na repressão de seus protestos no início do ano, também afirmou que não reconhecerá os referendos.
Nesse caso é uma medida de autoproteção, já que cerca de um quarto da população cazaque é de origem russa. Ou seja, em um futuro não tão distante, poderia ser essa população a protagonista de um referendo similar. Talvez, então, o comentário recente mais revelador sobre os referendos tenha sido de Sergey Lavrov, ministro de Relações Exteriores da Rússia. Ele afirmou que os territórios estariam sob “total proteção” da Rússia caso essa seja a “vontade de suas populações”.
Em termos militares, o referendo e eventual anexação pela Rússia poderia implicar que ataques contra esses territórios seriam vistos como ataques contra o Estado russo. De acordo com a constituição russa, é necessário que o Estado esteja sob ameaça para que o uso de armamento nuclear seja justificado, dentre outros procedimentos militares. Seria uma ferramenta de pressão feita pela Rússia, aumentando as chances de declarações sobre uso de armas nucleares.
Também no campo militar, existe a possibilidade de que a anexação dos territórios levaria à mobilização de sua população masculina para a guerra, tal como já ocorre em Luhansk e em Donetsk. Outra consequência de uma eventual formalização da anexação territorial pode ser em relação ao processo de paz. A Ucrânia, obviamente, já deixou muito claro que não reconhecerá os referendos. Em conversas de paz, então, a Rússia pode “colocar um preço” em troca de abrir mão desse reconhecimento. Ou, ainda, de maneira bastante improvável, a Rússia pode se declarar uma potência satisfeita, embora a Ucrânia já tenha deixado claro que não cederá territórios em troca da paz.
Em relação à anexação de territórios ucranianos, não existem muitos ganhos no horizonte russo. A decisão escala o conflito e aumenta o que está em jogo, isso em um momento desfavorável aos russos, com os recentes avanços ucranianos. Principalmente, isola a Rússia internacionalmente ainda mais, já que quase nenhum país vai querer apoiar uma medida que pode se voltar contra si um dia. Considerando os últimos meses, a Rússia não pode se dar ao luxo de ficar ainda mais isolada.
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