Dentre os debates sobre regras trabalhistas, você terceirizaria até armas nucleares? Claro, é uma brincadeira, mas ilustra bem a relação entre a Arábia Saudita e o Paquistão. No último domingo, 17 de fevereiro, o príncipe herdeiro saudita, e na prática mandatário da monarquia absolutista, Mohammed bin Salman, aterrissou em Islamabad, capital paquistanesa. Na mala, alguns bilhões de dólares, petróleo e uma relação estratégica que dura décadas.
A visita será relativamente rápida, mas com todas as pompas possíveis. O príncipe MBS parte na noite de segunda-feira, após uma recepção com tapete vermelho, salvas de canhões, feriado nacional e um fortíssimo aparato de segurança. Ao assumir o mandato, o novo premiê paquistanês, Imran Khan, de carreira milionária no críquete, o esporte mais popular da região, optou por permanecer em sua casa. Por um dia, o antigo palácio sede do governo terá como hóspede o príncipe saudita.
Economia
A economia do Paquistão é uma das que “mais crescem no mundo”. O país tem uma das dez maiores populações do mundo; uma enorme área fértil na região do rio Indo, um dos berços civilizatórios da humanidade; corredores de transporte que ligam o interior da Ásia ao Oceano Índico; e uma abundância de recursos naturais. Junto com isso, entretanto, o país tem baixíssimo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), altos níveis de pobreza e de analfabetismo.
Além disso, uma história marcada por governos autoritários e pela corrupção causada pela falta de divisão entre as esferas públicas e privadas. Isso causou períodos de crescimento econômico de curto prazo, sem sustentabilidade e sem grandes reformas; ou seja, a economia do Paquistão, historicamente, alterna períodos de crescimento e de grande inflação, com repetidas quebras do país, e a necessidade de aportes estrangeiros ou do Fundo Monetário Internacional. Mais de uma vez o socorro paquistanês veio dos sauditas.
A chegada de MBS com uma recheada mala de dólares é muito bem vinda. Segundo o Ministério de Relações Exteriores, serão assinados acordos em “investimento, finanças, energia, segurança, mídia, cultura e esportes”. A cereja desse bolo é um complexo petroquímico de dez bilhões de dólares em Gwadar, um porto histórico importante nas rotas da região; árabes, portugueses e britânicos estiveram ali pelos séculos.
Hoje são os chineses, que iniciaram em 2013 a construção de um novo e moderno porto. Esse porto servirá para os interesses energéticos da China no Oriente Médio, permitindo que petróleo e gás cheguem ao interior da China por via terrestre, desde o Paquistão. Mais barato e mais rápido. Para processar e refinar todo esse fluxo? Aí entram as refinarias sauditas e a expectativa de que os investimentos deem um polpudo retorno, enquanto incentivam o crescimento econômico paquistanês.
Armas de destruição em massa e estratégia
Além da economia, as relações saudi-paquistanesas possuem outro foco específico e mais concreto. Relações militares, desde o final da década de 1960. O Paquistão é o principal aliado muçulmano do governo saudita, mais do que os outros países da península arábica, que são todos diminutos em comparação aos sauditas. Essa relação estratégica entre os dois países servia a dois propósitos, mas ambos dentro de uma lógica similar.
De um lado, o Paquistão, fundado em 1947 e, desde então, em conflito com seus primos indianos. Ambos herdeiros do Raj britânico, ambos com um grande legado cultural e histórico, incluindo muitas semelhanças. Nesse período foram quatro guerras declaradas e uma infinidade de escaramuças, crises e tensões. Por isso que, mesmo sendo um país pobre, o Paquistão sempre investiu pesadamente em suas forças armadas e procurou diversos parceiros no mercado bélico.
O programa nuclear paquistanês remonta à década de 1960 e torna-se uma prioridade nacional quando a Índia realiza seu primeiro teste nuclear, em 1974. E como o Paquistão conseguiria custear um programa nuclear de ponta? Não conseguiria, precisaria de um parceiro internacional de peso. O Paquistão entraria com a pesquisa, os cientistas, os recursos naturais e o custo político da empreitada, e o parceiro entraria com o dinheiro.
Inicialmente, sauditas e a Líbia de Khadafi foram esses parceiros; divergências entre os militares paquistaneses e a Líbia levaram à expulsão dos líbios do projeto. Futuramente, Khadafi contratou por vastas somas alguns dos cientistas paquistaneses. Já os sauditas foram os principais parceiros e financiadores do programa nuclear paquistanês. O primeiro teste frio de uma arma nuclear paquistanesa foi em 1983.
A primeira detonação pública ocorreu em 1998, para protestos internacionais, o temor de uma guerra nuclear com a Índia e sanções econômicas. Menos dos sauditas, que parabenizaram o aliado e contornaram as sanções fornecendo petróleo e dinheiro em moedas fortes. A maioria das sanções foi extinta com a Guerra ao Terror e a necessidade de cooperação paquistanesa na guerra no Afeganistão.
Hoje, o Paquistão possui uma estimativa de 150 ogivas nucleares. Extra-oficialmente, negado por ambos os países, parcela dessas ogivas são reservadas para os sauditas, caso necessário. É possível, e essa coluna adiciona que é provável, que, caso o Irã realize um teste nuclear, rapidamente os sauditas anunciarão alguma espécie de acordo com o Paquistão e que possuem armas nucleares.
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Por isso que os sauditas financiaram o programa nuclear paquistanês, e aqui entra o outro propósito. Seria impossível a Arábia Saudita desenvolver suas armas nucleares sozinha, com parcos recursos humanos e, principalmente, sem causar apreensão e uma corrida nuclear por todo o Oriente Médio. O primeiro átomo de urânio enriquecido saudita motivaria a Síria de Assad, o Egito dos militares, o Irã, seja do xá, seja do aiatolá, todos eles, a terem o mesmo.
Um programa nuclear saudita também prejudicaria as relações do país com os EUA, que não poderiam tolerar essa proliferação nuclear, pelo temor dessa própria corrida. É imperativo lembrar que as ogivas nucleares israelenses foram derivadas de um projeto clandestino, altamente secreto, que envolveu muita aquisição de tecnologia por meios “não convencionais”; a boa e velha espionagem e o roubo de segredos.
Nada disso se aplicava ao Paquistão. Embora a proliferação nuclear fosse condenável, a obtenção de armas pelos paquistaneses recebia vistas grossas, uma forma de equilibrar as forças com seus rivais indianos e evitar que a Índia se tornasse uma hegemonia regional. Era justificável, ao contrário da mesma situação em relação aos sauditas.
E, novamente, essa cooperação militar entre sauditas e paquistaneses antecede o programa nuclear. Até o início da década de 1980, a Arábia Saudita passava longe de ser uma potência bélica regional, comparada ao Iraque de Saddam Hussein, por exemplo. Ela precisava de um aliado. O Paquistão, como potência regional, muçulmano e não-árabe, encaixava nessa necessidade como uma luva.
En 1979, durante o cerco da Grande Mesquita, quando um grupo de extremistas denunciou a aproximação saudita com o Ocidente, a operação de resgate foi realizada por forças especiais paquistanesas. Mesmo hoje, com o enorme número de paquistaneses e descendentes em solo saudita, dezenas de milhares de paquistaneses servem nas forças armadas sauditas, além de tropas nacionais do Paquistão frequentemente alojadas ali.
E não se pode esquecer que os sauditas possuem, como um dos ramos de suas forças armadas, a Real Força de Mísseis. Dotada de centenas de mísseis balísticos de médio alcance de origem chinesa, incluindo modelos mais novos, os sauditas podem despejar ogivas nucleares em todos seus vizinhos. Claro que o tamanho da força é uma especulação, não é o tipo de informação mais transparente, mas um país não teria equipamentos desse tipo caso não contasse com o tipo de carga que ele carrega.
E qual a lógica em comum dessa parceria nuclear? Que ao menos um país muçulmano tivesse ogivas nucleares. “Os cristãos têm a bomba, os judeus têm a bomba e agora os hindus têm a bomba. Porque os muçulmanos não terem a bomba também?”. Essas foram as palavras de Zulfikar Ali Bhutto, líder do país entre 1971 e 1977, reformador secular do Paquistão moderno e pai de Benazir Bhutto, a primeira mulher chefe de governo de uma nação muçulmana.
Radicalização e restante da viagem
A religião é um fator importante na relação entre paquistaneses e sauditas. Não apenas como um eixo civilizatório, mas também nas relações políticas. Os sauditas são guardiões das cidades sagradas do Islã, em uma relação simbólica de muito prestígio para Riad. Com a radicalização do regime saudita, essa política foi exportada. No caso do Paquistão, talvez para pior.
O Paquistão foi uma sociedade secular até meados dos anos 1980; desde então, o país tem tornado-se cada vez mais religioso e a religião tem tomado cada vez mais os espaços da administração do país, incluindo o judiciário. Em 1980, existiam 800 escolas religiosas (madrassas) no Paquistão; esse número subiu para quase trinta mil, a maioria financiada pelos sauditas.
Foi via Paquistão que os sauditas financiaram e armaram parte dos guerrilheiros fundamentalistas contra o regime secular socialista do Afeganistão e seus aliados soviéticos; o núcleo do que viria a ser o Talibã. Quando o grupo fundamentalista governou o Afeganistão de forma obscurantista e totalitária, na década de 1990, apenas três países reconheciam seu governo: sauditas e seus aliados do Paquistão e dos Emirados Árabes Unidos.
E isso não é apenas uma coisa do passado. O Talibã hoje é um dos principais atores no Afeganistão e está em conversas que envolvem o governo dos EUA; certamente os interesses sauditas nessas conversas farão parte dessa visita de MBS ao Paquistão. Assim como a relação com o Irã, antagonista saudita cujas relações com o Paquistão tem tomado um caminho azedo.
Do Paquistão, MBS segue para a Índia, onde os sauditas também têm grande presença econômica, e fecha a semana com dois dias na China. Em tempos em que o caso Khashoggi estremece as relações sauditas com o Ocidente e compromete sua Visão 2030, o país pode buscar reatores nucleares para geração de energia na chinesa Hualong. Os mesmos modelos que os chineses estão construindo em Karachi. No Paquistão.
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Para o leitor que desejar se aprofundar nesse tema, sugiro o livro de Hassan Abbas, Pakistan’s Nuclear Bomb. Infelizmente, apenas em inglês, por enquanto. E isso não é publicidade.
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