Se alguém que acha que a credibilidade da imprensa em democracias liberais está com problemas for olhar para a península coreana com mais atenção ficará aliviada. Na última semana foi publicada uma foto, pela Agência Central de Notícias da Coreia (ACNC), a agência estatal de notícias da Coreia do Norte, em que aparece o general Kim Yong-chol, durante uma performance musical encenada por esposas de oficiais do Exército norte-coreano.
Estavam presentes o ditador Kim Jong-un, sua esposa, Ri Sol Ju, e outros doze “alto oficiais”, segundo a agência estatal; Yong-chol era um desses “alto oficiais”, citado nominalmente pela ACNC. E, claro, qual a relevância disso tudo? Em tese, pequena, se trata apenas de um musical. A questão é que, semanas atrás, foi noticiado que Yong-chol teria sido executado como parte de um expurgo como punição pelo fracasso das conversas com os EUA em Hanói.
Unicórnios na Coreia
Além de general, Yong-chol é vice-secretário-geral do Partido dos Trabalhadores da Coreia, o partido fundado por Kim Il-sung, avô do atual líder norte-coreano, e o principal, quase único, partido do país. Yong-chol também é responsável direto pelos assuntos “peninsulares”; em outras palavras, negociações com a Coreia do Sul ou com atores relacionados ao tema. Como é o caso dos EUA. Foi Yong-chol que levou a carta de Kim, em estilo game show, para Trump na Casa Branca.
Sua execução, então, não seria coisa trivial. Estamos falando de alguém no altíssimo escalão norte-coreano, com informações privilegiadas e linha direta de contato com Mike Pompeo, secretário de Estado dos EUA. E a notícia de sua morte não saiu em qualquer panfleto ou blog obscuro, mas no Chosun Ilbo, um dos principais jornais da Coreia do Sul. E certamente os leitores vão se lembrar de outros casos de notícias bizarras ou violentas sobre a Coreia do Norte que acabaram sendo desmentidas.
Por exemplo, em dezembro de 2013, a própria ACNC noticiou que Jang Sung-taek, tio por casamento de Kim Jong-un, foi expulso do partido e executado. Rapidamente, jornais do sul e de outros países noticiaram que seu corpo teria sido jogado aos cachorros; algo que se descobriu ser invenção de alguém na internet, como “piada”, que virou uma bola de neve e ganhou força de fato. Temos também notícias sobre execuções que se provam falsas, sobre façanhas sensacionais atribuídas aos líderes do país, sobre fenômenos sobrenaturais.
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Nesse último exemplo, em 2012 foi noticiado que a Coreia do Norte alegou ter descoberto um “lar de unicórnios” como algo literal, reinvindicando a existência de unicórnios; na tradição chinesa e coreana, os kirin. Na verdade o termo era metafórico, referente ao sítio arqueológico ser ligado à antiga capital coreana do reino Goguryeo, cujas imagens dos kirin são relacionadas. Fazendo uma analogia, a notícia diria que encontraram o “lar dos olímpios” e a interpretação de que encontraram, literalmente, Zeus, e não um templo.
A primeira morte é a da verdade
O que explica tantas notícias falsas ou sensacionais sobre a Coreia do Norte? A resposta é uma junção de fatores. O ditado inglês diz que a primeira baixa de uma guerra é a verdade. A propaganda, a demonização, a espionagem, tudo isso faz parte do clima bélico. E é importante lembrar que, para muitos coreanos, do sul e do norte, em teoria uma guerra pode ser deflagrada em horas. Dá-lhe a propaganda exagerada, sobre si e sobre o inimigo. E também a informação e a contrainformação, como testes de comunicação.
Imaginemos a situação em que um general desconfia de que um de seus subordinados vaza informações aos jornais. Uma maneira de checar isso é dar uma informação falsa unicamente ao possível traidor e verificar se ela repercute. Se José fala para Paulo, e apenas para Paulo, que João foi executado, e isso está nos jornais no dia seguinte, temos a confirmação do delator. E isso serve tanto ao norte quanto ao sul, já que a Coreia do Sul, hoje democrática, é um país com profundo aparato de inteligência.
E se o sul é democrático, o mesmo não pode ser dito do norte, classificado como o país mais fechado do mundo pelos Repórteres sem Fronteiras diversas vezes, com a pior nota no índice de liberdade de imprensa. É difícil até obter imagens do país fora da mídia estatal ou do trabalho autorizado. Isso torna extremamente difícil a checagem de notícias em fontes independentes, a prospecção de reportagens locais e também é prato cheio para que o próprio Estado do norte teste seus canais de informação e desinformação.
Outro motivo é um bastante tradicional e conhecido da humanidade: ganhos. Políticos, como boas relações com autoridades; pessoais ou ideológicos, por simpatia ou antipatia aos atores envolvidos; e financeiros, oras. Cliques, manchetes, tudo isso rende, que o digam os tabloides ingleses. Só que as consequências disso tudo podem ser nefastas. Chegou-se ao ponto em que se normaliza qualquer notícia, por mais estranha que seja, vinda do norte. A tal da pós-verdade.
Informação e compreensão
É necessário ser cético. A Coreia do Norte executaria um dissidente? Sim. Ela executou? Não sei. Com requintes de crueldade, como na notícia falsa de uma execução feita com bateria antiaérea? Não sei mais ainda. A profusão desse tipo de manchete cria um comportamento que, a partir do momento que o leitor vê, sabendo que a Coreia do Norte executaria um dissidente, ela automaticamente fez isso da forma mais esquisita possível, e pronto, está confirmado.
Isso dificulta a boa informação e a compreensão do que ocorre na península coreana, tema de diversas colunas aqui nesse espaço e que é frequentemente cerne de comportamento de “torcedor” ou simplista por jornalistas e comentaristas. Nubla a realidade de forma com que não se entende mais o mundo, mas o que alguém quer te transmitir como mundo. Tudo isso já foi analisado pelo inglês Arthur Ponsonby, em 1928, na obra Falsehood in War-Time (Falsidade em tempo de guerra), analisando a propaganda britânica sobre os alemães.
No momento em que vemos uma notícia, qualquer que seja, necessitamos ser céticos; o que é diferente de apontar o dedo e acusar de mentira, deixa-se claro. No caso das repúblicas coreanas, esse ceticismo tem que ser dobrado, para não criar cenários exóticos e incríveis, onde tudo pode acontecer, por mais absurdo que possa soar aos nossos olhos e ouvidos. Senão caímos num teatro performado por caricaturas, não por pessoas e Estados com interesses e ações próprias.