Na tarde do último domingo, a ditadura de Belarus forçou o pouso de um avião civil, capturou dois de seus passageiros e ordenou que o voo seguisse sua rota. Parece enredo de filme de ação ou espionagem de qualidade duvidosa, mas aconteceu. O voo FR 4978 da empresa irlandesa Ryanair viajava de Atenas, capital grega, para Vilnius, capital da Lituânia. Uma rápida olhada no mapa mostra que uma linha reta entre as duas cidades passa por Belarus. Só que o avião chegou em seu destino quase nove horas depois do previsto, no que pode ser o maior “dane-se” de Alexander Lukashenko em seu objetivo de se manter no poder, junto ao apoio russo para manter Belarus em sua órbita.
A editora Helen Mendes já escreveu uma abordagem completíssima dos eventos aqui na Gazeta do Povo. Resta à coluna verificar alguns significados e potenciais consequências desses eventos. Antes, uma breve recapitulação. O voo transportava cerca de 170 pessoas, incluindo o jornalista belarusso crítico da ditadura Roman Protassevich e sua namorada, a russa Sofia Sapega. Dentro do espaço aéreo de Belarus, quatro homens iniciaram uma confusão a bordo, afirmando que teria uma bomba a bordo. O avião emitiu um alerta e a força aérea belarussa enviou um caça MiG-29 para interceptar e escoltar o avião ao aeroporto de Minsk. No solo, cerca de cinquenta policiais e militares os esperavam.
Todos os passageiros foram retirados em grupos, tiveram seus pertences cheirados por cães policiais e passaram pelo raio-X. Nesse meio tempo, o governo de Belarus teria recebido um ultimato do Hamas, em inglês: “Nós, soldados do Hamas, exigimos que Israel cesse o fogo na Faixa de Gaza. Exigimos que a União Europeia renuncie ao seu apoio a Israel nesta guerra”. Os passageiros foram retornados ao avião, que decolou rumo ao seu destino final, com seis assentos vazios. O do jornalista, o de sua namorada e mais quatro homens que “escolheram” ficar em Minsk. O avião pousou na Lituânia às 21:26, depois de diversas mensagens de alerta ou de ultraje pelas autoridades.
O “sequestro”
Novamente, esse é um breve histórico dos eventos e, caso deseje maior aprofundamento, repito a sugestão de leitura. Agora, alguns pontos. Primeiro, qual seria o sentido do Hamas colocar uma bomba em um avião logo após o cessar-fogo em Gaza? O que o grupo ganharia? Mesmo um ataque terrorista possui uma lógica ou um simbolismo. O que o Hamas teria com uma empresa irlandesa, ou a Lituânia? Quanto mais enviar o seu ultimato para Minsk, como se sabendo o ponto exato de onde o avião estaria. E o grupo faz seus comunicados em árabe, não em inglês. O Hamas, obviamente, negou qualquer envolvimento, em algo que é tão surreal que, novamente, parece um filme ruim.
E, além do jornalista e de sua namorada, outros quatro passageiros desembarcaram em Minsk. Seriam, então, terroristas do Hamas que se abrigaram em Belarus? Por qual motivo o país europeu abrigaria integrantes do Hamas, estremecendo suas relações profundas e estratégicas com Israel? Cerca de 1% da população israelense tem origem em Belarus, destino turístico comum para os israelenses. O país europeu também possui grande comunidade judaica, sobreviventes do Holocausto, e belorussos são uma das nacionalidades com mais Justos entre as Nações reconhecidos, pessoas que contribuíram para salvar vidas de judeus durante a perseguição nazista.
É mais provável que os quatro sejam agentes da KGB belarussa, responsáveis por criar uma situação absurda e forçar o desvio do voo para Minsk, com o propósito de capturar o jornalista opositor, que monitoravam desde o solo grego. E não, a sigla não está errada, o aparato de inteligência de Belarus manteve o nome do período soviético. Claro, fazendo uma suposição, desenhando um cenário que, no mínimo, é mais plausível do que a “trama do Hamas”. Outro ponto é que os passageiros provavelmente viveram momentos de pavor, não apenas pela ameaça de bomba, mas também pelo fato do avião ter sido escoltado de perto por um caça da força aérea.
Existe o “mito hollywoodiano” de que um avião realmente sequestrado pode ser eventualmente abatido. Novamente, isso é um mito criado por filmes. Nunca aconteceu e não existem leis que autorizem um “abate preemptivo” de um avião civil, mesmo que controlado por criminosos. A única vez em que isso foi realmente cogitado foi em relação ao quarto avião nos eventos do 11/09 de 2001, mas o avião caiu após, provavelmente, os passageiros tentarem retomar o controle. A Alemanha chegou a cogitar a formulação de uma lei nesse sentido, que foi declarada inconstitucional. Matar o refém não é aceitável, ponto, e esse mito acabou sendo aproveitado para o teatro.
As reações
Inicialmente, as autoridades reagiram de forma fraca e totalmente passiva. Mesmo para alguém acostumado com a necessidade de linguagem pouco agressiva em comunicados internacionais, foi chocante. A comissária de transportes europeia, Adina Valean, postou numa rede social que a decolagem do voo em Minsk eram “ótimas notícias para todos”. A empresa aérea inicialmente celebrou que “nada foi encontrado” no avião e que ele pôde seguir sua rota. Mesmo a secretaria de Estado dos EUA falou inicialmente em “desvio forçado”. Apenas depois que o avião decolou que o palavreado mais adequado tornou-se protagonista: sequestro de um avião por um Estado.
Isso pode ter sido uma precaução para evitar maiores desentendimentos antes da decolagem? Pode, mas negociações de bastidores não precisariam de declarações públicas em redes sociais. A reação mais concreta foi uma reunião extraordinária do Conselho Europeu, que avaliou o evento como “um risco sério à segurança dos passageiros e da aviação em geral”. Como consequência, aviões europeus não trafegarão em espaço aéreo belorusso e empresas belarussas não poderão operar em aeroportos da União Europeia. Parece bobagem, mas a posição central do país faz com que milhares de rotas passem pelo seu espaço aéreo, rendendo tarifas e dividendos.
Além disso, a restrição das operações das aéreas belarussas, sendo a Belavia a principal empresa, deixa o país ainda mais isolado e, paradoxalmente, mais na órbita de Moscou. Os governos de Belarus e da Rússia buscaram justificar suas ações fazendo comparações com as ações ilegais em 2013 contra o avião presidencial da Bolívia, na época governada por Evo Morales, na busca por Edward Snowden. Outra comparação possível é com as ações, também ilegais, do governo Reagan com o voo 2843 da EgyptAir, em 1985, que resultou numa crise diplomática entre EUA e Itália. Importante, entretanto, frisar novamente que todas as ações foram ilegais e não se justificam.
Custos
Esse é o paradoxo do direito internacional. Ele depende do voluntarismo dos Estados em seu cumprimento. Quando um viola, outro se acha no direito de fazê-lo também. Ou, então, pode tomar esse curso caso ache que seus interesses valem mais do que as boas relações. Nesse sentido, analisando friamente, de longe, Lukashenko abriu mão de muita coisa, na economia e na imagem, para capturar um mero jornalista opositor. Não se trata de um espião, um detentor de segredos de Estado, mas um jornalista opositor, com cara de vendeta pessoal do ditador. Mesmo que as denúncias do suposto envolvimento de Roman Protassevich com grupos neonazistas na Ucrânia se confirmem, não vale o custo.
Lukashenko também correu um risco provavelmente desnecessário. Ao cometer um ato de pirataria aérea contra um avião de uma empresa de um país da Otan, registrado em um país da aliança, que viajava entre outros dois países da Otan, com diversos cidadãos da Otan a bordo, ele agiu frontalmente contra o preceito de segurança coletiva da aliança. Resultaria numa guerra? Dificilmente, mas não é “mexer com a pequena Lituânia” apenas. Novamente, mesmo pensando no cenário da retórica belarussa, de que Roman Protassevich é um criminoso neonazista que age de acordo com interesses estrangeiros para desestabilizar países da órbita de Moscou, o preço foi alto demais.
Quem saiu ganhando nisso tudo? Certamente não foi o jornalista, que, ao ser preso, teria dito para um passageiro lituano que será executado. Economicamente, provavelmente o espaço aéreo polonês ficará mais movimentado, podendo render a fatia das tarifas que antes ia para Minsk. A Rússia também saiu fortalecida, já que, agora, a tendência é que a dependência de Belarus em relação à Rússia se aprofunde. Lukashenko, ao dizer "dane-se" para o mínimo que se espera de um governante, pode ter tido o prazer de capturar um opositor, mas se afastou ainda mais de uma solução negociada para a crise em seu país. Finalmente, certamente os roteiristas de Hollywood saíram ganhando, com um caminhão de ideias.