Nos últimos anos tem crescido uma admiração pelos atuais governos da Polônia e da Hungria. Ambos são governos de direita nacionalista, supostos defensores de valores ocidentais, alegam enfrentar a burocracia e a intervenção da União Europeia e suas sedes administrativas em Bruxelas. Os dois governos também se apoiam nas identidades religiosas e possuem políticas contra imigrantes e refugiados. Um símbolo disso foi a jornalista húngara que chutou refugiados enquanto produzia uma matéria.
Jornalistas e analistas políticos mundo afora, frequentemente movidos por afinidade ideológica, louvam elogios aos dois governos, baluartes de “liberdade” e “democracia”. Especialmente pela citada resistência às regras da União Europeia ou ao fato de que a UE possa estabelecer parâmetros comuns, uma suposta interferência na soberania nacional; o suposta será abordado mais adiante. A questão é que liberdade, democracia e resistência à UE desses governos são mera retórica demagógica, que seduz apenas à primeira vista.
Similaridades históricas
Hungria e Polônia possuem, como nações e como Estado, trajetórias similares. Ambas nações passaram séculos submetidas a outros impérios. Os húngaros eram dominados pelos católicos Habsburgo em Viena, atual capital da Áustria. Perseguição ao idioma, etnias diferentes, grande comunidade protestante, tudo isso afastava os húngaros de seus dominadores.
Apenas com a Revolução de 1848 e a posterior humilhação austríaca nas mãos da Prússia, em 1866, isso mudou. Foi formado o Império Austro-húngaro, uma monarquia dual. A Hungria ganhou autonomia, seu próprio parlamento, o idioma húngaro ganhou novo status, embora a coroa continuasse na cabeça de um Habsburgo e, na prática, Budapeste estivesse abaixo de Viena.
Já os poloneses tiveram seu território retalhado pelas potências vizinhas desde o século XVIII, nunca sendo uma nação independente. Parte do território fazia parte da Prússia, posteriormente do Império Alemão, outra parte era do Império Russo. Os católicos poloneses estavam submetidos aos protestantes Hohenzollern em Berlim ou aos ortodoxos Romanov em São Petersburgo.
As religiões são importantes de se ter em vista pois são elementos centrais na identidade nacional das duas comunidades, justamente uma resistência ao domínio estrangeiro. Ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, após revoluções, conflitos internos e externos, Polônia e Hungria emergem como repúblicas independentes, encerrando séculos de espera das duas nações.
Independências
Nesses últimos cem anos, a trajetória dos dois países continua similar. No entreguerras, ambos adotaram ideias nacionalistas de caráter fascista: irredentismo territorial, superioridade nacional, tentativas de criação de sociedades homogêneas e perseguição aos símbolos e pessoas que remetiam aos antigos dominadores, desde o nome de origem germânicas de cidades até a expulsão das pessoas de suas próprias casas. Cabe lembrar que nacionalismo e patriotismo não são sinônimos.
A Segunda República Polonesa foi marcada pelo movimento de características fascistas Sanacja (Regeneração), que retomaria os “valores poloneses”, conduzido pelo herói nacional Józef Piłsudski, marechal líder das tropas polonesas que lutaram contra a Rússia. De 1918 a 1935 ele foi a autoridade de fato na Polônia. Seu sucessor tomou parte do Acordo de Munique, em 1938, que fatiou o território da então Tchecoslováquia; uma pequena parte do território foi tomado pela Polônia.
Na Hungria, o mandatário foi Miklós Horthy, como regente, de 1920 a 1944. Almirante da antiga Marinha Austro-húngara, Horthy era uma das principais lideranças dos Brancos nacionalistas e monarquistas contra os Vermelhos socialistas na guerra civil húngara após a Grande Guerra. Após a guerra civil, Horthy buscou um buscou um governo de conciliação nacional, adotando um perfil de conservador clássico.
Um país humilhado pela guerra, uma economia em frangalhos e a pressão de movimentos nacionalistas e expansionistas, entretanto, sequestraram seu governo para medidas autoritárias com o passar do tempo. A Hungria perdeu dois terços do seu território anterior e, até hoje, comunidades expressivas de húngaros vivem na Sérvia, na Romênia e na Eslováquia, herança do grande império multinacional dos Habsburgo. Curiosamente, no entreguerras, existiam mais húngaros vivendo como imigrantes do que dentro da Hungria.
Simpatia pela Alemanha nazista, vista como exemplo de recuperação desses mesmos problemas, seduziu boa parte dos húngaros. A ascensão do fascismo húngaro na década de 1930, com lideranças como Gyula Gömbös e o Partido da Cruz Flechada, mudou completamente os planos de Horthy. O país embarcou em uma aventura nacionalista e expansionista, que pretendia retomar os antigos territórios via a aliança do Eixo.
Segunda Guerra Mundial, Holocausto e Guerra Fria
A única grande distinção da trajetória dos dois países no século XX ocorre durante a Segunda Guerra. Enquanto a Hungria era aliada alemã, parte do Eixo e se beneficiou brevemente de expansões territoriais, a Polônia foi abandonada à sua própria sorte e invadida pela Alemanha nazista ao oeste; dias depois, pelo leste, invadida pela União Soviética.
Confusão comum, motivada habitualmente por ideologia, é ver nessa partilha da Polônia justamente uma motivação ideológica. Como visto, os territórios poloneses foram, por mais de século, parte da Alemanha e da Rússia. Na perspectiva desses dois Estados, simplesmente não deveria existir uma Polônia independente, estavam “apenas” retomando seus antigos domínios. A linha do pacto Molotov-Ribbentrop praticamente restaurava as fronteiras pré-Primeira Guerra Mundial. A motivação era revanche, dominação e expansão.
A Hungria, após os primeiros anos de expansão, ao enfrentar a tempestade de revés que o Eixo plantou, tentou abandonar o barco. Horthy expulsou o partido Cruz Flechada do governo e tentou negociar a paz em paralelo com os aliados. A Hungria foi ocupada pela Alemanha e Horthy foi obrigado a ceder o poder, com seu filho tomado como refém. Durante a guerra, a Hungria, além de participar dos combates como aliada militar, também cedeu força de trabalho e recursos naturais aos alemães.
Notadamente, a Hungria colaborou com o Holocausto de judeus e do povo roma. Mais de 600 mil civis húngaros foram assassinados pelos regimes nazifascistas; hoje, sapatos de bronze às margens do Danúbio, em Budapeste, lembram essas pessoas, que tinham que descartar seus calçados ao embarcar para os campos de extermínio. Cerca de 300 mil húngaros foram mortos executados, violentados ou deportados pela ocupação de tropas aliadas da URSS, da Tchecoslováquia e da Iugoslávia.
Os territórios conquistados foram perdidos, a economia e o país estavam destruídos e 200 mil militares húngaros morreram na guerra. Na Polônia, a escala foi muito maior. Cerca de três milhões de judeus e de três milhões de poloneses foram mortos pelo nazifascismo, incluindo grupos nazistas ucranianos. Outros 150 mil poloneses foram mortos pelos soviéticos.
Cerca de 140 mil militares poloneses e 150 mil guerrilheiros dos grupos de resistência morreram. A Polônia, mesmo após sua rendição, continuou ativa no conflito, sendo a quarta maior fornecedora de tropas no cenário de guerra Europeu. Poloneses lutaram dentro das forças britânicas em solo, no mar e no ar, com importante papel na derrota da Alemanha nazista. A resistência polonesa foi a mais ativa contra os nazistas, como no Levante de Varsóvia.
Durante a Guerra Fria, ambos os países foram ocupados pela URSS e tornaram-se regimes socialistas contra a sua própria vontade. Ambos os regimes foram marcados pela perseguição de opositores. Sob a justificativa de expurgar antigas lideranças fascistas (que de fato existiam), os novos governos perseguiram também a oposição democrática, incluindo veteranos da Segunda Guerra Mundial. A Revolução Húngara de 1956 foi esmagada pela URSS e o Solidariedade, movimento sindicalista de oposição na Polônia, ficou uma década como clandestino. Dezenas de milhares foram mortos.
Ao fim da Guerra Fria, em 1990, ambos os países se democratizaram, com eleições e abertura de seus mercados anteriormente fechados ao Ocidente. Ambos enfrentaram problemas similares. O fim de regimes comunistas causou uma euforia política, com a criação de diversos novos partidos e um novo papel aos antigos partidos comunistas. A rápida abertura econômica criou um choque de inflação e uma miríade de casos de corrupção nos processos de privatizações das antigas economias estatizadas.
Nacionalismo, democracia e liberdade
Com o perdão da redundância da palavra ambos, os dois Estados tornaram-se membros da União Europeia no mesmo ano, em 2004, na maior expansão da comunidade europeia em sua História. Esse processo causou outro choque. Países que, em 1989, eram fechados, autoritários e de economia estatal, quinze anos depois, estavam inseridos nas regras das democracias liberais de mercado. Um prazo curtíssimo, sequer uma geração. Ambos os Estados herdam uma elite política, intelectual e jurídica formada em outra era, que precisa enfrentar desafios totalmente diferentes em um mundo novo. Uma sociedade que rapidamente se vê deslocada, com mudanças rápidas demais.
Com a crise de 2008, esses choques de realidade econômica, política e social são agravados, ainda mais considerando o tamanho da crise na Europa. Cenário em que ambas as comunidades vão abraçar ideais nacionalistas, construções idealizadas e românticas de suas “verdadeiras” identidades e valores. Ao nacionalismo soma-se o papel geopolítico dos dois Estados, como um tampão entre a Europa ocidental e a Rússia, o antigo “Cordão Sanitário” para deter um expansionismo soviético.
Esse nacionalismo idealizado das duas sociedades vai beber em fontes similares e com uma interpretação distorcida similar da História: a de que os países foram vítimas dos mesmos algozes. Seriam eles o expansionismo russo ou comunista ao leste, e o expansionismo germânico ao oeste, seja imperial, seja nazista, seja “Europeu”. E, como em qualquer visão romantizada, ela não resiste aos exemplos empíricos.
O atual nacionalismo húngaro e polonês convenientemente esquece das próprias agendas expansionistas nacionalistas, citadas aqui, ou como também o Prometeísmo polonês (tema de uma coluna futura, talvez). Ignoram os governos autoritários dos seus passados, em um papel de vítima de males externos. Deixam de lado o colaboracionismo das duas sociedades em diversos episódios.
Não se trata de negar que a Polônia é uma das nações que mais sofreu na mão de dominadores estrangeiros nos últimos 150 anos, mas de não negar que, por exemplo, a proposta lei polonesa de criminalizar quem associar a Polônia ao Holocausto é absurda. A parte polonesa que pertencia ao Império Russo era local de violentos pogroms contra a população judia, com uma sociedade antissemita. Isso não evapora do dia para a noite.
Durante a ocupação alemã durante a Segunda Guerra ao menos 31 pogroms foram realizados por poloneses contra judeus. O mais conhecido é o de Jedwabne, quando mais de trezentos judeus poloneses foram queimados vivos trancados em um celeiro. Cometido por poloneses! E não se trata de um evento obscuro. Seu aniversário de sessenta anos contou com a presença do então presidente polonês Aleksander Kwaśniewski.
A atual ministra da educação do país, Anna Zalewska já declarou ter dúvidas sobre a participação de poloneses no evento, em uma tentativa de reescrever a História. Além dos pogroms existiam as pessoas que colaboravam com a ocupação, delatavam judeus, e também a chamada Polícia Azul, formada por dezesseis mil poloneses e responsável por vigiar guetos de judeus. Nada disso pode ser negado, deve ser lembrado e discutido, para que nunca mais se repita.
União Europeia e demagogia
O atual primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, da União Cívica Húngara, chegou ao poder mais recentemente em 2010; ele já havia sido premiê antes da entrada do país na UE, entre 1998 e 2002. Na Polônia, Mateusz Morawiecki, do Lei e Justiça, foi eleito em 2017; seu partido está no poder desde 2015 e, anteriormente, entre 2005 e 2007, com uma visão menos nacionalista no período. Ambos os governos abraçam as visões nacionalistas, vistas até aqui e expressas em marchas, bandeiras e slogans.
Ambos os governos também adotam as práticas de “Estado iliberal”, uma democracia de fachada, com instituições presentes porém esvaziadas. Diminuição de independência do Judiciário, por exemplo, que ocorreu na Hungria e está em vias na Polônia, nos dois países com a mesma justificativa: diminuir a influência de juristas formados no período socialista. Ironicamente, Orbán é formado em Direito em 1987.
Nos dois países, os governos se aproveitam de maiorias legislativas para emendar leis que favoreçam os próprios governos. Usam a retórica nacionalista e de uma identidade romântica para criticar processos migratórios, refugiados e as supostas interferências da União Europeia dentro dos países. Tudo parte de um discurso demagógico para seduzir a população e o eleitorado.
Dos cerca de 14 milhões de húngaros, cinco milhões, um terço, vivem foram do país, vários em regiões do antigo Império Austro-húngaro, que se beneficiam diretamente do livre trânsito de pessoas, de bens e de dinheiro dentro da UE. Dos cerca de 60 milhões de poloneses, novamente um terço vive fora do país. Só entre França e Alemanha já são quatro milhões de poloneses nesses países.
Em 2005, na França, a figura do “encanador polonês” tornou-se célebre do debate político. Alusão aos imigrantes poloneses com instrução superior, como engenheiros, que “invadiriam” a França para trabalhar em postos de trabalho menos elaborados, mas que pagavam melhor em comparação à realidade da Polônia de então. O imigrante também é polonês e húngaro, e se beneficia das regras europeias.
Pode-se alegar que são todos da mesma civilização ocidental, entretanto, não é bem assim. Poloneses e húngaros são eslavos, e o idioma húngaro é um idioma urálico, da Ásia central. E, principalmente, o populismo nacionalista anti-Europeu desses governos é feito com bases no dinheiro da própria União Europeia. Entre 2004 e 2007, a Polônia recebeu 22 bilhões e meio de euros do orçamento europeu; entre 2007 e 2013, 67 bilhões; entre 2014 e 2020, 86 bilhões de euros. Um total de 175,5 bilhões de euros.
No caso da Hungria, foram 25 bilhões entre 2007 e 2013 e 29 bilhões entre 2014 e 2020, um total de 54 bilhões de investimentos europeus. Para uma visão mais detalhada, toma-se como exemplo o ano de 2017. A Polônia contribuiu com o orçamento europeu em três bilhões, 0.68% do seu Rendimento Nacional Bruto; ela recebeu 11.9 bilhões, 2.67% do seu RNB. Já a Hungria contribuiu com 800 milhões e recebeu quatro bilhões. No total, a Polônia é o país que mais recebe recursos europeus, e a Hungria é o terceiro.
Ou seja, os dois países recebem muito mais dinheiro do que contribuem. De acordo com o próprio governo húngaro, o crescimento de 4% da economia do país em 2017, sem os investimentos europeus, seria de apenas 1,7%. Nos últimos quinze anos, os maiores investidores na Polônia e na Hungria foram as instituições da União Europeia! Os defensores desses governos alegam que tais investimentos dão retorno aos países de origem. Isso é meia verdade.
Os países do leste europeu representaram novos mercados e mais mão de obra para empresas privadas, como companhias de aviação e de alimentos, isso é fato; os investimentos europeus, entretanto, não são de empresas privadas, mas via contribuição orçamentária dos Estados, em obras de infraestrutura, como água potável, estradas e energia. Os governos de Varsóvia e de Budapeste, quando criticam a União Europeia, são menos “bastiões da liberdade” e mais como aqueles dependentes que reclamam de quem os sustenta mas não saem de casa.
Até pelo fato desse “sair de casa”, no caso de Hungria e de Polônia, seria extremamente prejudicial, dando prejuízo econômico e político. Sair da UE significaria maiores possibilidades de capitais chineses e russos, especialmente em energia, o que não é desejado por questões políticas. E também seria, novamente, demagogia. Como já explicado nessa coluna, em circunstância anterior, organizações internacionais não possuem autoridade para atropelar a soberania nacional.
Todo e qualquer processo decisório da União Europeia conta com a participação dos Estados e de seus representantes eleitos. Todo e qualquer processo. Não há um “presidente da Europa” ditando as regras. Polônia, Hungria e qualquer outro país podem ser derrotados nessas discussões políticas? Podem, como uma bancada de um estado da federação brasileira pode perder uma disputa no Congresso.
Isso quer dizer que a soberania está sendo solapada? Não. Primeiro, pois os países participaram do processo decisório. Segundo, pois essas foram as regras constituintes da UE. Repetindo uma analogia já feita aqui, quando se entra em um clube, se aceita as regras daquele clube. Quando a União Europeia investe em seu país ou quando as decisões são do seu interesse, são europeus membros do clube. Quando as regras, que você aceitou, vão contra o seu interesse de calar o Judiciário, reclama-se de interferência? O nome disso é demagogia.
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