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A polícia da Nicarágua prendeu Rolando Álvarez, bispo de Matagalpa e ferrenho crítico da ditadura de Daniel Ortega. A prisão ocorreu na última sexta-feira (26) após um impasse de duas semanas sobre a residência episcopal. Ele foi preso junto de outras oito pessoas, incluindo outros sacerdotes da Igreja Católica, depois de ter sido impedido de celebrar uma missa na catedral da sétima maior cidade do país. Essa prisão e a repressão contra a Igreja Católica na Nicarágua possui um aspecto frequentemente condenado e outro que muitas vezes é ignorado, embora não deva ser.
O governo acusa Álvarez de “organizar grupos violentos e incitá-los a realizar atos de ódio contra a população (...) com o objetivo de desestabilizar o Estado nicaraguense”. O bispo, que critica violações de direitos humanos pelo governo de Ortega, é mais uma figura da Igreja Católica que sofre perseguição no país nos últimos anos. Igrejas foram cercadas e padres foram detidos nas últimas semanas. Rádios, jornais e estações de televisão ligadas à igreja foram fechadas.
Organizações católicas de caridade estão na lista de ONGs que foram fechadas por ordem do governo e o núncio papal, o representante diplomático da Santa Sé, foi expulso do país. Esses são os exemplos principais da repressão, que precisa e deve ser condenada. A liberdade de credo, a inviolabilidade de templos e a livre expressão por sacerdotes são pilares societais que precisam ser protegidos, mesmo em tempos de guerra ou crises. Um padre, um bispo, um pastor, um rabino, um imã, um babalorixá, o representante da religião que for, deve ter o direito de celebrar seus ritos e se comunicar com seus pares.
Estado laico
Também deve ter o direito de fazê-lo em segurança, sem interferência do Estado. Essa é uma das funções do Estado laico, que é, ou deveria ser, uma via de mão dupla. Deixando de lado Estados teocráticos ou com religiões oficiais, organizações religiosas são independentes, contam com imunidades, inclusive fiscais, e não sofrem interferência do Estado. Ao mesmo tempo, não devem interferir nesse mesmo Estado. Claro que, em tempos de “bancadas religiosas” essa distância e a imunidade fiscal podem ser discutidos, mas essas são outras conversas.
Por ser um caso na América Latina, existe um contexto próprio à essa repressão pelo governo Ortega. Como mencionado, a liberdade religiosa deve ser preservada e essa violação é frequentemente condenada. Outro aspecto, entretanto, é o peso político da Igreja Católica na América Latina, incluindo na Nicarágua. A maioria da população do país é católica, seguidos por cristãos de outras denominações. Além de ser a religião da maioria, a Igreja Católica, como instituição, possui capilaridade e presença política, tanto histórica quanto em exemplos recentes.
No presente ano de 2022 tivemos duas crises latino-americanas que foram encerradas com a participação da Igreja Católica. No início de julho, no Equador, após semanas de protestos por causa de atividades mineradoras e preços de combustíveis, a Confederação de Nacionalidades Indígenas e o governo Guillermo Lasso anunciaram um acordo. A Igreja Católica foi a principal mediadora do acordo e o texto foi assinado na sede episcopal da capital, Quito, com a presença do arcebispo Alfredo José Espinoza Mateus.
No final do mesmo mês foi a vez do governo panamenho Laurentino Cortizo chegar a um acordo com manifestantes e lideranças populares. Acordo novamente mediado pela Igreja Católica. Em um exemplo ainda mais significativo e também recente, o acordo de paz entre o governo da Colômbia e as FARC, assinado em 2016, também contou com a participação da Igreja Católica, especialmente na articulação que possibilitaram as conversas sediadas em Havana. No ano seguinte, o Papa Francisco visitou o país vizinho.
Histórico e ameaça
Pelo processo histórico de formação das sociedades latino-americanas, a Igreja Católica possuiu, e ainda possui, um grande peso institucional e imagem de legitimidade perante a população. Além disso, deve-se lembrar que a Igreja Católica não é homogênea, com lideranças como bispos mais próximos de setores de governo, enquanto padres de paróquia são próximos de lideranças locais e sociais. Isso dá capilaridade à própria Igreja. Um símbolo disso durante a Guerra Fria era o fato de que muitos padres aderiram à Teologia da Libertação, uma abordagem teológica que incorpora conceitos marxistas.
Nada disso é estranho à Nicarágua. Podemos até dizer que está ligado de forma umbilical ao país, já que, no império espanhol, a atual Nicarágua fazia parte do Vice-Reino da Nova Espanha, que teve nos padres Miguel Hidalgo e José Maria Morelos alguns de seus líderes de independência. Mais recentemente, a igreja teve papel na estabilização do país na década de 1990 e, no século XXI, o próprio Ortega renegou sua defesa pública do direito ao aborto de gestação para se aproximar da igreja.
Finalmente, a igreja buscou papel mediador durante os protestos de 2018, contra Ortega. Por isso, tornou-se alvo de apoiadores de Ortega e, posteriormente, de seu próprio governo. A acusação feita pelo governo e seus aliados é de que a igreja está dominada por setores conservadores, herdeiros dos apoiadores do ditador Somoza, especialmente os bispos. Classificados como terroristas, eles teriam “abandonado” um papel de neutralidade mediadora.
Além de reprimir e violar a liberdade religiosa, as ações de Ortega são politicamente calculadas para atingir talvez o principal ator político com legitimidade popular que ainda resta no país. Ou seja, a Igreja Católica é uma ameaça ao seu poder, por ser uma “concorrente” nos corações e mentes da população. Para alguns, o papel mediador que a instituição cumpre em diversos países da região, inclusive no presente ano, é uma solução. Para Ortega, é um risco.
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