Ouça este conteúdo
A guerra na Ucrânia possui alguns aspectos internacionais na composição das fileiras militares. O governo ucraniano autorizou o serviço militar de voluntários estrangeiros com experiência militar e contratou mercenários. A Rússia, por sua vez, também utiliza mercenários e busca contratar soldados na Síria. Esses são os exemplos mais conhecidos, junto com um fato curioso: o que explica a presença de soldados chechenos em ambos os lados do conflito?
Em colunas recentes aqui em nosso espaço comentamos tanto sobre o uso dos sírios como “bucha de canhão” quanto sobre a presença de tropas chechenas no exército russo. Essa mobilização ocorreu logo no início do conflito, na última semana de fevereiro. Foram convocados alguns milhares de soldados da República da Chechênia, sem um número preciso, incluindo centenas da principal unidade, os kadyrovitas, uma tropa especial subordinada a Ramzan Kadyrov, chefe da república autônoma russa.
A Federação Russa contém vinte e duas repúblicas, regiões nominalmente autônomas com uma população de maioria não-russa. Possuem uma constituição própria e idiomas com status oficial. A maior delas é a de Sakha, no extremo leste. Lar dos yakuts, um povo túrquico siberiano, a república possui mais de três milhões de quilômetros quadrados. Seria o sétimo maior país do mundo, maior que a Índia. Sua população de menos de um milhão de pessoas, entretanto, exemplifica um dos motivos da existência dessas repúblicas.
Historicamente, são heranças territoriais da expansão do Império Russo, do século XVI em diante, tendo passado por processos de russificação e de integração econômica ao restante do país. Nos últimos trinta anos, o arranjo federal permite unir a autonomia regional com a uma maior representação internacional, já que as repúblicas autônomas são subordinadas ao governo federal em temas como defesa e política externa. Sozinha, com ínfima densidade demográfica, a república de Sakha dificilmente teria essa representatividade.
Quem são os chechenos?
A Chechênia é uma das mais conhecidas repúblicas russas, lar do povo de mesmo nome e uma das repúblicas russas com menor proporção de população russa. Os chechenos são um povo ciscaucasiano, historicamente chamados de nakh, junto com os inguches, que também são representados em uma república russa. O idioma desses povos é bastante diferente do russo e a maioria deles é de muçulmanos sunitas. Inclusive, militares chechenos possuem permissão excepcional para manterem barbas.
O uso de soldados chechenos por Moscou foi inicialmente motivado pela necessidade de diminuir o número de baixas entre russos étnicos, algo que poderia aumentar os protestos em cidades como Moscou e São Petersburgo. Também serviria para aumentar a intensidade e a combatividade em alguns setores do conflito, marcados por vários relatos preliminares de baixa moral e combatividade em algumas tropas russas. Isso foi por vezes classificado como “valor de choque” por algumas vozes na imprensa, o uso da suposta “ferocidade” dos chechenos como propaganda contra soldados inimigos.
Muitos desses soldados são veteranos das guerras da Chechênia, marcadas por violência brutal e a destruição de Grozny. De possível propaganda russa, o estereótipo, entretanto, acabou sendo adotado pela propaganda ucraniana. Os chechenos foram comparados a "bárbaros". O perfil oficial da Guarda Nacional Ucraniana, que inclui diversas milícias neonazistas, como o batalhão Azov, compartilhou a imagem de integrantes do grupo passando banha de porco nas balas contra os "orcs de Kadyrov". No caso, “orcs” são monstros do universo de Senhor dos Anéis, desumanos e vis por natureza.
A prática de besuntar projéteis com banha de porco supostamente foi criada por tropas dos EUA lutando contra guerrilheiros muçulmanos durante a ocupação colonial das Filipinas, como maneira de "impedir" que o alvejado vá para o Paraíso, devido ao contato com o porco. A propaganda, entretanto, ignora ou não explica que existem combatentes chechenos em ambos os lados da guerra. Propagandas podem ser ferramentas úteis para mobilizar as pessoas, manipulando suas paixões, mas passam longe de serem uma amostra interessante ou esclarecedora da realidade.
Conquistas russas
A Ucrânia conta, desde 2014, com o batalhão Dzhokhar Dudayev, formado por centenas de voluntários chechenos, a maioria deles veteranos das guerras anteriores. Seu fundador foi Isa Munayev. Quando a Primeira Guerra da Chechênia começou, em 1993, ele era um policial em Grozny. Nove anos depois, quando do início da segunda, ele era um coronel das forças chechenas. Ele buscou exílio na Dinamarca em 2004, após os avanços russos.
Em 2014, após a anexação da Crimeia pela Rússia, ele foi para a Ucrânia, onde organizou o batalhão batizado em homenagem ao líder independentista da Chechênia do início dos anos 1990. O foco do batalhão era a luta na bacia do Don, contra os separatistas pró-Rússia. Foi ali, em Donetsk, que ele morreu em combate em fevereiro de 2015, sendo homenageado postumamente como Herói da Ucrânia. Ele foi uma das centenas, talvez até dois mil, de chechenos que lutam pela Ucrânia. Ou, melhor dizendo, contra a Rússia.
A região Ciscaucasiana começou a ser conquistada pelo império russo no século XVII. Esse processo de conquista foi consolidado no século XIX, e justamente as regiões da Chechênia e da Inguchétia foram das últimas a serem conquistadas, em parte devido ao relevo montanhoso que favorece insurgências de resistência. Desde então existem movimentos de resistência ao domínio russo na Chechênia. Em linhas gerais, existem tanto movimentos autonomistas políticos quanto os religiosos que baseiam essa resistência no Islã.
Devido ao seu pequeno tamanho, a Chechênia não era uma república da União Soviética, como a própria Rússia ou a Ucrânia. Eram repúblicas autônomas da República Socialista Soviética Federativa da Rússia, usando o nome oficial. Um status similar ao que existe hoje. Essa foi a razão jurídica para o não-reconhecimento do secessionismo checheno no início dos anos 1990, quando o citado Dzhokhar Dudayev declara a República Chechena da Ichkeria.
A reação russa inicialmente fracassou e, na prática, a Chechênia manteve sua independência por alguns anos. Além do argumento jurídico, outras duas preocupações motivaram a ação militar russa. Primeiro, impedir que isso inspirasse outras repúblicas a declararem independência, como o Daguestão ou o Tartaristão. Segundo, a região Ciscaucasiana é economicamente importante, com refinarias, gasodutos e oleodutos que transportam hidrocarbonetos do mar Cáspio.
Guerra no futuro?
O fim da busca pela independência chechena veio com a Segunda Guerra da Chechênia, essencial para a ascensão e consolidação de Putin, entre 1990 e 2000, com guerrilhas resistindo até 2010. Algo marcante nesse processo foi a mudança de lados da família Kadyrov. Akhmad era um dos principais líderes chechenos e, em 1999, ele chegou a um acordo com a Rússia. Ele foi assassinado em 2004 por jihadistas chechenos e sucedido por seu filho, Ramzan Kadyrov, hoje o chefe da Chechênia e aliado de Putin.
O assassinato ilustra a divisão entre os chechenos, cuja maioria da população masculina possui treinamento e experiência militar. De um lado os que favorecem suas lealdades tradicionais ao chefe da república e, consequentemente, à Rússia. Do outro, os que mantêm uma luta independentista e não reconhecem o governo de Moscou, lutando na Geórgia e na Ucrânia contra o que veem como o mesmo poder imperial que domina a sua terra de origem.
Como curiosidade, um dos locais com maior comunidade chechena do mundo é a Polônia, em parte por serem dois povos que enxergam a Rússia como uma potência historicamente dominadora. O fato é que a presença de soldados chechenos em ambos os lados do conflito atual vai além do mero uso de mercenários e é parte de uma disputa maior envolvendo a Rússia. Também serve de lembrete de que a Chechênia é um local cuja importância vai além das piadas com trocadilhos típicas da televisão brasileira do período das guerras, e uma nova guerra no Cáucaso não pode ser totalmente descartada para o futuro próximo.