A corrida democrata para as eleições dos EUA de 2020 deveria ter começado oficialmente na noite de ontem, segunda-feira, em Iowa. Onze candidatos se digladiam pelo direito de enfrentar Donald Trump em Novembro; na prática, a disputa está entre os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren, o ex-vice-presidente Joe Biden e o ex-prefeito de Nova Iorque Michael Bloomberg. Após meses de debates, pesquisas, articulações políticas e quase duas dezenas de desistências, o Partido Democrata decidiu abrir a disputa com um fracasso que joga suspeitas na campanha e certamente causou um sorrisão no rosto de Trump.
Para início de discussão, Trump já era o favorito. Recapitulando o que foi escrito aqui nesse espaço ao final de 2019: “Hoje, Donald Trump é favorito para o dia Três de Novembro. Primeiro, a economia vai bem e o desemprego em baixa, fatores sempre importantes para o comportamento eleitoral. O impeachment, até o momento, pouco atingiu a popularidade de Trump perante seu eleitorado fiel. Finalmente, quem será o candidato democrata? Enquanto a oposição se confronta entre si, Trump está em campanha desde meses atrás.”. Ou seja, os democratas já estavam em desvantagem do ponto de vista eleitoral.
Abordagens éticas
O partido decidiu então pela corrida em uma perspectiva ética. Em um fronte, buscaram o impeachment, acusando Donald Trump de abuso de autoridade e de ter obstruído o Congresso. As provas foram principalmente as conversas com o presidente ucraniano e depoimentos de diplomatas da Secretaria de Estado. Graças à maioria democrata na Câmara, o impeachment foi aprovado, e provavelmente será derrotado pela maioria republicana no Senado, que já barrou depoimentos de novas testemunhas. Gostando ou não de Trump, as provas eram tênues, longe de ser um Watergate.
Em outro fronte dessa corrida ética a proposta era propagandear o partido como a antítese de Trump. Ele seria uma figura centralizadora, que tomou de assalto o Partido Republicano, se cercou apenas de fiéis seguidores, usa o poder para benefício próprio e colocou a família em posições de Estado. Os democratas, nessa luta de narrativas, seriam plurais e transparentes, desejosos de uma democracia saudável e que respeite o amplo aparato de Estado; o que Trump chama pejorativamente de “deep state”, foco de teorias da conspiração de alguns de seus apoiadores.
Mais ainda, Trump seria instável e impulsivo, tomando decisões que contrariam os interesses de longo prazo dos Estados Unidos; essas eram as palavras do senador John McCain, republicano, falecido em 2018. Já os democratas buscariam uma política de maior consenso. Outros temperos dessa propaganda são as questões raciais, sexistas e financeiras, que Trump representaria uma seletiva casta de bilionários. Claro que propaganda política é algo absolutamente normal, presente naturalmente em eleições. O poder de convencimento e a demonização do adversário tornam-se a prioridade.
Isso vale para eleições para presidente dos EUA, para presidente do Brasil, para prefeito de uma pequena cidade no Peru, o que for. O problema é quando a propaganda possui tantas contradições que parece um queijo suíço cheio de furos. O ápice da contradição é ver Michael Bloomberg como o pré-candidato que mais gastou dinheiro em sua campanha em toda a História do país. Um homem branco septuagenário bilionário nova-iorquino com um histórico de declarações controversas. Basicamente a mesmíssima demografia que Donald Trump, nenhuma novidade numa perspectiva eleitoral.
Joe Biden, o favorito do mandachuvas democratas, pode não ser um bilionário mas também não fica muito atrás nas semelhanças com Trump. O discurso sobre os candidatos, então, fica no mínimo enfraquecido, mas os buracos na imagem não acabam aí. Trump passou anos tuitando sobre a “crooked Hillary”, expressão para desonesta, referente aos e-mails vazados do comitê democrata das eleições de 2016, mostrando que o partido ativamente trabalhou para minar a candidatura de Bernie Sanders e favorecer Hillary Clinton. Essa campanha eleitoral seria a chance para mostrar que Trump estava errado em agir assim.
Mudanças de regras
E o que acontece? No dia 21 de Janeiro é lançado um documentário sobre, e de, Hillary Clinton. O dia parece inofensivo, mas foi exatamente a semana seguinte ao último debate democrata antes do início dos votos, e o documentário contém diversas críticas à Bernie Sanders; naquele momento em ascensão nas pesquisas internas, enquanto Biden está em queda. No dia 31 de Janeiro é publicada uma súbita mudança nas regras que permitirá que Michael Bloomberg participe do debate democrata em Nevada, dia 19 de Fevereiro. No mesmo dia “vaza” outra proposta interna do partido democrata.
Nesse caso, para mudar a ordem de voto das primárias, permitindo que os superdelegados democratas fossem os primeiros a votar, antes dos delegados eleitos. Os superdelegados compõe cerca de 15% dos votos nas primárias, e são integrantes do partido que fazem parte da convenção partidária por seus próprios méritos, sem serem eleitos. Ou seja, o voto que representa o interesse do partido. A mudança de ordem de voto permitiria que Biden começasse a corrida em vantagem, possivelmente alterando a mobilização em torno de Sanders.
É importante lembrar que Bernie Sanders, embora concorra pelos democratas, na prática é independente, representando uma ala mais à esquerda no atual partido democrata. Sua candidatura não é o maior dos sonhos de Clinton, Biden e outros. A proposta de mudança de ordem do voto foi negada e não foi pra frente. Bernie Sanders retribuiu com ataques contra Biden, “corrupto”, Warren, “mentirosa”, e Bloomberg, “oportunista”. A luta fratricida só gerava manchetes negativas, enquanto Trump surfava de um comício a outro, na final do futebol americano universitário e tuitando contra o impeachment.
Para tentar contornar todos esses anos de ataques ao partido, os democratas anunciaram mudanças para as prévias de Iowa. A primeira etapa das prévias consiste nos caucus, algo muito diferente do que temos no Brasil e que parece um palavrão. A ideia das mudanças era tornar o voto mais inclusivo, interativo e ágil. Escrever isso depois do que aconteceu desperta risos. O diretório democrata de Iowa disse que os resultados apresentaram “inconsistências”, adiou a publicação dos números, o app que seria inclusivo não aguentou o tráfego, não tinham linhas telefônicas suficientes e tudo está sendo feito à mão.
Representantes distritais não conseguiram comunicar os resultados para o diretório central. As teorias da conspiração começaram a pipocar. Por exemplo, um dos distritos com mais problemas foi o de Black Hawk, com maioria da população afro-americana pró-Bernie Sanders. Veio a publicação carta dos advogados da campanha de Biden, ameaçando judicializar a disputa e acusando o diretório estadual de “falhas consideráveis”. Bernie Sanders declarou-se vencedor do pleito, baseado em “fontes internas”; ou seja, se números oficiais negarem isso, está pronta a acusação de armação.
Do que adianta ficar meses, anos, batendo em teclas éticas, contra a centralização, defendendo o seu partido como bastião da democracia, e não conseguir realizar uma eleição interna sem incidentes em um estado cuja população total é de apenas três milhões de pessoas? Mudanças de regras, suspeitas sobre transparência (a ironia!), uma campanha agressiva e agora marcada por um fiasco no que deveria ser a largada da corrida. Novamente, pode-se gostar ou odiar Trump, tanto faz, o que não é possível é negar a realidade de que ele está ainda mais favorito e com um belo sorriso estampado na cara.
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