O príncipe herdeiro da coroa saudita, Mohammed bin Salman| Foto: Bandar AL-JALOUD / outras fontes / AFP
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Preço do petróleo caindo, bolsas caindo, políticos desorientados, pessoas apreensivas. As últimas horas foram de tensão e espanto, sensações causadas pela velocidade dos eventos e pela surpresa que pegou quase todos desprevenidos. Acaba sendo uma ótima oportunidade para demonstrar a importância de acompanhar o noticiário internacional e compreender ao menos um pouco do tabuleiro geopolítico mundial. O que habitualmente são notícias distantes e sem relação com o cotidiano da maioria dos brasileiros tornam-se, em momentos como esse, a explicação de mudanças de preços e tomam toda a mídia ao seu redor. Nesse momento, quatro eventos tornam-se importantes.

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A primeira questão é a mais óbvia, a pandemia do novo coronavírus, que causa a Covid-19. Diversas outras pessoas já analisaram o efeito da doença na economia mundial, com muito mais competência do que esse colunista. Em suma, a paralisação da economia chinesa, com quarentenas e férias coletivas, diminuiu de maneira dramática a demanda por commodities. O isolamento de outros países e a disseminação da doença diminuiu tanto o comércio internacional, com quedas de diferentes demandas, como o turismo e os comércios locais, afetando a cotação das moedas. O fechamento de fronteiras e o pânico em alguns setores da população também cobram seu preço econômico e financeiro.

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Dependência do petróleo

Isso leva ao segundo fator. Existem países cujas economias dependem da exportação de commodities. Se não dependem, estão profundamente conectadas, como é o caso do Brasil; por exemplo, 30% do PIB do estado do Rio de Janeiro é derivado dos hidrocarbonetos. Essas economias, ao se depararem com o cenário causado pela Covid-19, podem tentar interferir nos preços das commodities que são suas fontes de recurso. No caso do petróleo, a abordagem mais conhecida é o cartel internacional Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a Opep, subir os preços de forma concertada com cortes de produção; esse fenômeno ficou conhecido quando dos choques do petróleo.

A questão do petróleo no ano de 2020 já havia sido citada aqui neste espaço, no primeiro texto do ano. Outra possibilidade é o aumento da produção, diminuindo o preço e ganhando na quantidade. Isso funciona mesmo em momentos de baixa demanda, já que não se trata de um produto de uso localizado. Países e empresas vão comprar petróleo barato, nem que seja para manutenção ou expansão de reservas. O governo chinês, por exemplo, em sua doutrina de defesa, estipula a necessidade de reservas de petróleo que possibilitem que o país fique noventa dias sem importar uma única gota de óleo; algo em torno de 600 milhões de barris guardados, e quase todo país trabalha com a ideia de uma reserva estratégica.

O terceiro fator é que a Opep está esvaziada e desprestigiada. Esse tema já foi abordado aqui neste espaço quando do anúncio da saída do Qatar da organização. Dos dez maiores produtores de petróleo, metade não integra a organização: EUA e Rússia, os líderes mundiais, Canadá, China e Brasil. Seu poder de manipular os preços não é mais o mesmo e a organização vinha dependendo de um acordo entre Rússia e Arábia Saudita. Além disso, os atores internacionais não estão mais no mesmo compasso em seus interesses de petróleo. O mundo hoje é muito diferente do da década de 1970, quando a Opep mostrou o seu cartão de visitas ao mundo.

Os sauditas dependem do comércio marítimo para exportar o seu óleo, pelos grandes petroleiros. Isso encarece o preço final comparado ao óleo comercializado via oleodutos terrestres, como é o caso da maioria das exportações russas. Outros países tornaram-se atores importantes nesse mercado, como Brasil e países africanos, diversificando a oferta e possibilitando negócios mais vantajosos em suas regiões. Na América do Norte, a exploração do óleo de xisto diminuiu a dependência dos EUA de óleo importado e, nos últimos anos, o país tornou-se um exportador de petróleo, algo que não acontecia desde décadas atrás.

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Queda de braço

Esses três fatores explicam o rompimento entre sauditas e russos, que levou aos novos preços que pegaram o mundo de surpresa. Os sauditas desejavam cortar a produção e aumentar o preço. A Rússia recusou, já que não precisa de um petróleo tão caro para compensar sua exploração, pois exporta via oleodutos. Além disso, a exploração do óleo de xisto é cara e, com o petróleo num preço reduzido, a produção dos EUA fica prejudicada, assim como seu mercado financeiro, que, nos últimos anos, foi sedento ao pote das novas empresas da área. Os sauditas, então, dobraram a aposta e fizeram algo que, basicamente, nenhum outro país do mundo conseguiria fazer.

Aumentou sua produção em um milhão de barris por dia. Nenhum país possui essa capacidade de produção ociosa. Se a Rússia quer o preço baixo, ok, então vamos ganhar na quantidade, coisa que somente nós conseguimos nesse nível; mesmo com o transporte barato, a extração de óleo russa é mais cara. Esse é o raciocínio saudita. E aqui entra, sorrateiramente, o quarto aspecto desse tabuleiro todo. A disputa de poder interna saudita. O rei Salman, de 84 anos, estaria no crepúsculo de sua vida. Seu filho mais conhecido (de treze) e ungido sucessor é o príncipe Mohammed bin Salman, conhecido pela sigla MBS e um rosto conhecido mundialmente. Lembrando que, em árabe, "bin" (ou ibn) é "filho de".

O príncipe MBS teria ordenado a prisão de três integrantes da família real, por um suposto golpe contra o rei Salman; em 2017 ele já ordenou um expurgo dentro da realeza saudita. Um dos presos é seu tio, Ahmed bin Abdulaziz, de 77 anos, outro é o sobrinho do rei e ex-sucessor Mohammed bin Nayef, e o príncipe Nawaf bin Nayef; são mais de mil príncipes sauditas. Como o nome Ahmed bin Abdulaziz transparece, ele é filho do fundador do reino, Abdulaziz Saud, irmão do atual rei Salman. No final das contas, é possível que o golpe seja, na verdade, do príncipe MBS. No início dos anos 2000, seu tio Ahmed era um potencial candidato ao trono saudita.

Mais que isso, todos os reis sauditas até hoje foram ou o fundador do reino, Abdulaziz, ou seus filhos, e a linha sucessória tradicionalmente prioriza os filhos do rei Saud. Ou seja, com a morte de Salman, seu irmão Ahmed poderia reivindicar o trono, embora num cenário improvável. Ainda assim, algo que não agrada MBS, o atual príncipe da coroa, nem um pouco. A prisão dos golpistas pode ter sido ordenada em meio uma disputa palaciana pela sucessão do rei de idade avançada. Numa análise especulativa, MBS poderia até mesmo usar a legitimidade do pai, ainda vivo, para anunciar uma eventual abdicação em nome do príncipe. Com o atrativo do país sediar o G20 neste ano.

Política perene?

O evento com os líderes das principais economias do mundo seria a vitrine ideal para consagrar MBS como o líder, de fato e de direito, da Arábia Saudita, o primeiro rei saudita que não é filho de Abdulaziz. A decisão de enviar o preço do petróleo ao chão também pode envolver motivações de criar uma cortina de fumaça na situação política do reino, e também mostrar comando e poder por parte do príncipe. Principalmente, a atual política saudita para o óleo não deve ser uma política perene de produção. A decisão jogou o valor das ações da petroleira estatal Aramco para baixo, gerando impactos negativos não apenas nas finanças, mas também na imagem do reino.

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Indo além, quase todo o orçamento estatal saudita depende da renda do petróleo. Mesmo com ganhos na quantidade exportada, o governo saudita não conseguirá manter-se funcionando com os preços muito baixos. Isso inclui os gastos sociais, pilar do governo totalitário que não enfrenta muitos protestos de sua população atendida, e a agenda modernizadora Visão 2030, o cartão de visitas de MBS. O governo saudita não consegue existir da atual maneira sem o dinheiro do petróleo. Para complicar, a região de Qatif foi colocada em quarentena pela Covid-19. A província na costa do Golfo Pérsico é um dos principais focos da exploração saudita de óleo.

A soma de todos esses fatores permite não apenas compreender o que está se passando, mas também elaborar quatro cenários, quatro perguntas, para o futuro próximo. Primeiro, até quando os países envolvidos vão conseguir aguentar essa queda de braço? Putin declarou que as reservas de seu país podem manter essa política por até uma década, o que pode ser uma bravata. Segundo, quando os países que dependem da exportação de petróleo vão começar a compreender, e se adaptar, que o mundo consome cada vez menos petróleo, e que o valor do óleo hoje deriva muito mais dos riscos geopolíticos da sua exploração e de seu comércio do que da oferta do produto?

Terceiro, essa progressiva mudança energética irá finalmente enfraquecer o reino dos Saud, uma monarquia absolutista, sem transparência alguma, que consegue fazer o mundo de refém, pelo menos por algumas semanas? Um país que, por suas relações com os EUA, consegue fazer o mundo pagar parte do preço de intrigas palacianas e de sua política agressiva na região? Finalmente, o que vai acontecer quando a epidemia da Covid-19 passar e as demandas voltarem ao normal? Os preços vão cair ainda mais, ou os antigos cartéis voltarão à ter utilidade? São as perguntas que devem ser analisadas não só nos próximos meses, mas para a próxima década.

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