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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

Cultura e identidade nacional

Um problema diplomático com duzentos anos de idade

A estátua Vênus de Milo, no Museu do Louvre, em Paris (Foto: )

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Duzentos anos atrás, no dia Oito de Abril de 1820, um fazendeiro grego chamado Theodoros Kendrotas, e seu filho Giorgios, estavam coletando algumas pedras na fazenda da família. Ela era perto da atual vila de Trypiti, na ilha de Milos, no mar Egeu, parte da Grécia, então dominada pelos otomanos. O nome da vila pode ser traduzido como “esburacada”, referência às rochas vulcânicas porosas da região, e ela é conhecida por ser perto das ruínas de um antigo teatro e das catacumbas da ilha. E, ao contrário das correntes de e-mail ou de aplicativos que começam contando uma passagem, essa não é fake news, nem golpe. Os Kendrotas, ao retirar pedras para sua fazenda, acabaram encontrando um dos mais importantes tesouros arqueológicos recentes, a Vênus de Milo.

A famosa estátua de dois metros de altura foi recuperada, como o leitor deve imaginar, sem os braços. Estava “encapsulada” em uma espécie de caverna natural. Com o passar do tempo, é claro que quem conta um conto, aumenta um ponto. Jamais saberemos exatamente como foi aquele Oito de Abril. As versões mais romantizadas falam até em um feixe de luz iluminando a pequena caverna. Balela, claro. Não há nada de sobrenatural em uma estátua de quase dois mil anos de idade ter ficado soterrada em algum momento, ainda mais em uma ilha vulcânica, marcada por atividade sísmica.

Então, entra a parte de como ela foi parar na França, onde está até hoje, no Museu do Louvre. A versão mais provável começa com um jovem oficial da marinha francesa, Olivier Voutier.

Ele comandava um navio de passagem pela região e teria recebido um pedido de ajuda de Kendrotas para retirar a estátua; quase uma tonelada de peso não é algo simples, e uma tripulação inteira pode ser útil. O oficial já teria ficado de olho na estátua. Importante lembrar que, em 1820, trata-se da França da Restauração Bourbon, absolutista e aristocrática. Um oficial da marinha dificilmente seria alguém sem uma família instruída para os padrões da época. Voutier seguiu viagem para Constantinopla, imaginando articular com o embaixador francês no império Otomano a aquisição da estátua. Outro oficial francês, chamado Dumont d'Urville, fazendo trajeto similar, teve a mesma ideia. Com o detalhe de que ele chegou primeiro à Constantinopla.

Bajular o rei

O segundo oficial se encontrou com o Conde de Marcellus, secretário do embaixador, o Marquês de Rivière; ele quase foi executado em 1804, por participar de uma conspiração para tentar derrubar Napoleão e restaurar o poder Bourbon. O Conde de Marcellus recebeu a ideia do oficial e a elaborou. O embaixador poderia adquirir a estátua e dá-la de presente ao rei Luís XVIII. Bajular o chefe passa longe de ser algo novo. Mas houve outra reviravolta.

Embora Voutier tenha chegado depois à Constantinopla, foi ele o encarregado da viagem de volta do embaixador. Desembarcaram em Milo decididos à pagar uma pequena fortuna ao fazendeiro grego e aos administradores otomanos. Mas houve ainda mais uma reviravolta: um pasha otomano já havia comprado a estátua e estava preparado para levá-la.

O embaixador teria tido que fazer algumas ameaças sobre as relações entre os otomanos e os franceses e, principalmente, ter molhado algumas mãos. Segundo o diário do próprio embaixador, foram 250 francos para administradores da ilha e 750 francos para o fazendeiro. Os mil francos seriam algo próximo da renda anual do salário de um embaixador. Em Março de 1821 o rei da França recebeu seu caríssimo souvenir e o cedeu para o Louvre, sob a gestão do conde de Forbin. Mais um momento em que o puxa-saquismo entra em ação. Querendo valorizar a descoberta, ele teria descartado o pilar da estátua, que trazia a inscrição do autor, Alexandros de Antióquia, colocando a estátua como feita em torno de 130 antes de Cristo.

Ou seja, a estátua seria um produto do Helenismo, a fusão de culturas pós-Alexandre, com influências gregas, macedônicas, persas e egípcias. Um período tido como “menos nobre” na visão aristocrática da época. Forbin, longe da honestidade intelectual que se esperaria de alguém em sua posição, descartou a base e atribuiu a estátua ao ateniense Praxiteles, do período clássico. Não demorou para notarem a fraude, mas até hoje não se sabe o que aconteceu com o pilar. Outros boatos falam que os braços teriam sido descartados ainda na Grécia, que uma das mãos segurava uma maçã, o que provaria que seria uma estátua de Afrodite, dentre outras especulações. Inclusive, o correto seria Afrodite de Milo, já que Vênus era a divindade romana, posterior da escultura.

Identidade nacional e o Brexit

Desde então, a Vênus de Milo está no Louvre. Foi guardada durante guerras mundiais, estudada, criticada, adorada. E talvez algum leitor esteja se perguntando qual a relação desse tema com uma coluna de política internacional, mesmo escrita por alguém originário da História. O aniversário de duzentos anos da descoberta é um lembrete de uma constante missão na política externa de diversos países: a da repatriação de seus patrimônios arqueológicos, ligados de forma umbilical às suas identidades nacionais. Muitas vezes essa repatriação é vista como uma maneira de superar ou deixar para trás um período de fragilidade do país, quando outros vieram e levaram suas riquezas e suas propriedades, sejam amigos ou não tão amigos assim.

Mentalmente, vinculamos imediatamente representações de divindades antigas em mármore aos gregos ou, no máximo, aos romanos. Sarcófagos egípcios, escrita cuneiforme babilônica, vasos chineses de porcelana, todos esses objetos não são apenas tema de estudo, são componentes de identidades, elementos de educação de um povo. E não é apenas discurso ou teorização.

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Para um exemplo mais concreto, patrimônio grego do mesmo início de século XIX pode afetar um eventual acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Reino Unido após o Brexit. Os Mármores do Parthenon são obras de dois mil e quinhentos anos de idade, feitas pelo mestre Pheidias, ocupando 75 metros das paredes do British Museum. Também são conhecidos como os Mármores de Elgin.

Esse nome é uma referência a Thomas Bruce, sétimo Conde de Elgin. Durante as guerras napoleônicas, entre 1801 e 1812, o conde desmontou e transportou os painéis de mármore para Londres, além de algumas estátuas. Supostamente com uma autorização, uma firman, do sultão otomano. A questão é que esse documento nunca foi mostrado e não existe em lugar algum, sendo que os arquivos otomanos são conhecidos por serem completíssimos. Mesmo na época, o conde foi acusado de pilhagem e de vandalismo. Como uma solução “pizza”, ele foi exonerado do governo, que “se ofereceu” para comprar os mármores. Uma aposentadoria com uma conta gorda no banco. Os mármores estão desde o período no British Museum.

Alguns anos depois, em 1823, a Grécia declarou independência. Desde então o Estado grego exige a devolução do seu patrimônio arqueológico. De forma ostensiva. Articulou uma campanha tão vasta que hoje existe a Associação Internacional para a Reunificação das Esculturas do Parthenon, uma coalizão de uma série de ONGs, universidades e órgãos de apoio de governos pelo mundo.

Tentativas de mediação foram rejeitadas pelo governo britânico, que bate pé ao dizer que a aquisição dos mármores foi feita de forma legal. No mês passado, a embaixada grega em Londres soltou um comunicado que diz: “As reivindicações britânicas sobre a legalidade da aquisição são seriamente contestadas por uma série de estudiosos e cientistas”.

E a nota segue, sabendo que é um momento de barganha. “Recentemente, o primeiro-ministro grego fez um apelo, por ocasião do Bicentenário da Guerra da Independência Grega, em 1821, para reunir os mármores do Parthenon que foram brutalmente removidos do monumento em Atenas”. Brutalmente removidos.

Um suposto rascunho vazado de proposta de acordo entre a UE e Londres gerou manchetes como a do tabloide The Sun: “Chefes da UE devem exigir o retorno dos mármores de Elgin à Grécia”. Representantes de ambos os lados rapidamente colocaram panos quentes, afirmando que se trata de uma negociação geral sobre comércio de bens culturais e intercâmbio científico e museológico. Este acaba sendo um tema que esbarra nos orgulhos nacionais tanto gregos quanto britânicos.

Londres não quer ceder uma herança do seus tempos de potência dominante dos mares e do mundo, onde o sol nunca se punha. O British Museum é um constante lembrete dessa dominação, uma ferramenta de poder e de política externa. Os gregos exigem a devolução de seu patrimônio histórico, considerando como uma peça faltante em um quebra cabeças do orgulho nacional. E não é necessário ser um profundo conhecedor de política internacional para saber que negociações que esbarram no orgulho dos envolvidos são as mais difíceis de serem resolvidas. Ninguém quer ceder um passo que seja, um sinônimo de derrota coletiva. Mesmo meras curiosidades para a imensa maioria das pessoas, peças de arte encontradas duzentos anos atrás ainda podem gerar muito barulho no mundo.

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