O Iraque está na beira do precipício de uma guerra civil deflagrada. O país mesopotâmico não é exatamente um parâmetro de estabilidade, com conflitos internos em maior ou menor grau desde a ditadura de Saddam Hussein. O que está acontecendo dentro da população iraquiana nesse momento, entretanto, é algo de proporções poucas vezes vistas. Trata-se da maior mobilização popular da História recente do país, com uma igual escalada na repressão e nos interesses externos.
O Iraque, como já brevemente explicado em uma série de textos sobre o Oriente Médio aqui nesse espaço, é um palco de tensão e disputa entre as duas principais potências regionais, o Irã e a Arábia Saudita. Cada um busca expandir sua influência dentro do país, alimentando grupos políticos e milícias armadas. O atual governo do Iraque, do premiê Adil Abdul-Mahdi, é aliado de Teerã, em uma perspectiva mais neutra; pode-se dizer até que ele é um satélite dos iranianos.
Aqui cabe uma lembrança sempre pertinente num espaço de política internacional, ainda que esquecida inclusive por comentaristas do tema. Em relações internacionais entre Estados existem interesses. A visão de mocinhos e vilões é muito atraente e fácil de ser transmitida, e é sempre sedutor se imaginar como um dos mocinhos; ninguém nunca se imagina como vilão. Isso tudo é uma maquiagem. Pode-se apontar as contradições desses discursos, mas sem esquecer que, no fundo, são todos vilões.
Saud vs Irã
Sauditas e iranianos querem a mesma coisa no Iraque: tirar o rival de sua fronteira. Controlar o Iraque é controlar o acesso terrestre ao outro. Junto com isso ganha-se aliados, seja na política, seja na economia. As relações comerciais entre Irã e Iraque, por exemplo, são um dos maiores alívios nas sanções dos EUA contra os iranianos. A dependência iraquiana de energia elétrica iraniana, por exemplo, fez com que mesmo Washington abrisse exceções nessa relação comercial.
Junto com essa disputa geopolítica estão os interesses e queixas da população comum iraquiana. E não são poucos, uma série de pautas que muitas vezes convivem entre si, às vezes se contradizem. A principal bandeira é uma bastante familiar das populações de países em desenvolvimento, como certos gigantes latino-americanos. A soma de corrupção estatal com problemas na oferta ou na qualidade de serviços públicos. Com o agravante de que o Iraque ainda enfrenta os problemas de uma série de guerras.
A citada dependência iraquiana de energia elétrica estrangeira é um desses serviços públicos caros e que sofre com pouca qualidade; apagões ou racionamentos não são incomuns em algumas regiões iraquianas. Transporte público é outro problema. Bagdá teve a construção de seu metrô interrompida em 2003. Trens foram desativados. Linhas aéreas regionais são quase inexistentes. Principalmente, os serviços que dependem de mão de obra qualificada, já que o Iraque é carente devido intensa fuga de cérebros.
Serviços de saúde, engenheiros, educação, assistência jurídica. Cerca de 20% dos iraquianos vivem longe do país, algo em torno de dez milhões de pessoas. Quando se pensa em alguém que fugiu de uma guerra, imagina-se apenas a pessoa que colocou todos seus pertences em uma sacola e andou até países vizinhos; afegãos chegaram à pé na Europa, uma viagem inimaginável. Esquece-se do, por exemplo, médico que vendeu tudo o que tinha, juntou um certo dinheiro e foi com a família de avião para o Reino Unido.
Nesse cenário soma-se a corrupção, não apenas de grandes contratos, mas as pequenas corrupções cotidianas. Parado pela polícia? Precisa de um documento? Está com pressa para ser atendido? Não há uma vaga? Tudo pode se dar um jeitinho, ainda mais em uma sociedade ainda marcada por questões sectárias e com pouca tradição democrática. A corrupção e o desvio das funções públicas são dos principais, quase onipresentes, legados de ditaduras, em qualquer lugar do globo.
Uma possível guerra civil
A soma de disputas de influência geopolíticas externas com o descontentamento de parte da população interna ao país resultam numa mistura explosiva. Vide a Síria em 2011. É necessário um equilíbrio delicado. Por um lado, não se pode comprar a ilusão de que os protestos iraquianos são 100% orgânicos, apenas fruto da sociedade civil, sem interesses escusos, sem milícias organizadas. Ao mesmo tempo, não se pode se deixar perder nos elos externos e esquecer da população comum.
O próprio repúdio aos interesses externos é parte das pautas dos protestos. De um lado, os anti-iranianos, que repudiam o atual governo como um fantoche de Teerã. Do outro lado, os anti-EUA, que enxergam os males do país como originários da invasão pelos EUA, o que inclui o repúdio a certos setores iraquianos e aos sauditas. São tantas variáveis que, de grosso modo, hoje existem quatro conjuntos dentro da sociedade iraquiana. Um deles são os curdos iraquianos, ao norte, que possuem uma agenda própria.
Outro é o dos governistas e dos grupos pró-Irã, como as milícias xiitas e os braços locais do Hezbollah. Durante a redação dessa coluna, os jornais New York Times e The Intercept publicaram a primeira matéria fruto de um vazamento de centenas de documentos mostrando o alcance da influência iraniana no país. Não se precisa ir tão longe, entretanto. Um exemplo bem explícito foi recente, quando uma reunião do conselho de defesa iraquiano foi presidida por Qasem Soleimani.
Ele é o general iraniano responsável pela inteligência da Guarda Revolucionária Iraniana. Sim, uma reunião do conselho de defesa de um país foi presidida por um general de outro país. Um dos estopins dos protestos foi o afastamento do general Abdel-Wahab al-Saadi, herói nacional na luta contra o Daesh; o general sunita foi supostamente vítima da influência iraniana. Outro setor são os sunitas islamistas, próximos dos sauditas e que se enxergam como pouco representados, até reprimidos, pelo atual governo.
A maior parte da população sunita vive no norte do Iraque, longe da fronteira com os sauditas; exceção é a cidade de Bassorá, maior cidade do sul, e berço dos protestos. Um quarto grupo são os dos trans-sectários; socialistas seculares e xiitas que são oposição ao governo, muitas vezes se auto-descrevendo como “nacionalistas”, por rejeitarem tanto o Irã quanto os sauditas. O principal líder é Muqtada al-Sadr, que batiza o seu próprio movimento, os Sadristas.
Curiosamente, seu movimento político é a maior bancada do parlamento iraquiano, e apoio do governo, ao menos até o momento. Essa soma de facções e de bandeiras, incluindo grupos armados organizados, com um governo que se vê cada vez mais ameaçado, já deixou mais de trezentos mortos apenas no último mês, em números oficiais. Feridos, detidos, tortura, o número já passa dos milhares. Qual a solução no horizonte? Nenhuma, ainda mais com tantos interesses externos envolvidos.
E esse é o maior problema, o mais provável estopim de uma nova guerra civil no Iraque. A atuação de milícias pró-Irã contra milícias pró-sauditas já ocorre. O exército do país, em tese, é neutro nessa disputa. Até o momento em que o próprio exército nacional começar a se esfacelar. Ou quando estrangeiros iniciarem grandes operações de influência, para manter, ou derrubar, o atual regime. Aí será tarde demais. Cabe aguardar que os movimentos não-sectários consigam mediar alguma forma de diálogo.
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