O Líbano é um vulcão gestando uma erupção. Enquanto um barril de pólvora vai explodir em breve, um vulcão pode explodir amanhã ou daqui dez anos. Um conflito no Líbano pode ser iminente, assim como pode ser gerenciado e adiado progressivamente. O fato é que o país vive uma crise em diversas frentes e que uma explosão pode ser catastrófica, com efeitos sentidos por toda a região.
Na última quinta-feira, dia 14, tiroteios em Beirute deixaram cerca de seis pessoas mortas, além de trinta feridas. Imagens circulando nas redes sociais mostravam o uso de lança-foguetes e fuzis. O motivo principal das hostilidades é a disputa sobre o rumo das investigações sobre a explosão ocorrida no porto de Beirute em agosto de 2020, que deixou mais de duzentos mortos.
Julgamento e economia
A explosão, uma das mais violentas já registradas, desconsideradas as nucleares, já foi abordada aqui no nosso espaço. Negligência e corrupção provavelmente tiveram um papel essencial na tragédia. O Hezbollah afirma que as atuais investigações conduzidas pelo juiz Tarek Bittar são uma perseguição ao partido, enquanto apoiadores do juiz alegam que o Hezbollah quer apenas impedir a descoberta de esquemas de propinas no porto.
Principalmente, os apoiadores dos grupos cristãos libaneses, cujo maior exemplo é o partido Kataeb, cujo antigo nome era Falanges, uma associação ao fascismo franquista espanhol. Tarek Bittar, embora de uma região com grande presença sunita, é maronita. A questão sectária também faz parte das acusações de viés contra o juiz. O fato é que um juiz dificilmente teria a concordância de todos os envolvidos na política libanesa.
A disputa sobre a explosão, entretanto, é apenas um dos elementos que alimenta o vulcão libanês. A economia libanesa está em frangalhos. A moeda local perdeu cerca de 90% de seu poder de compra desde agosto de 2019 e mais da metade dos libaneses estão na linha da pobreza. Segundo agências da ONU, a disparada dos preços dos alimentos levou a uma situação de insegurança alimentar no país.
A crise é explicada por cinco fatores. A longa crise política do país, que teve seis governos desde os protestos de 2011; a falta de liquidez dos bancos libaneses, cujo sistema bancário é bastante opaco; sequelas das sanções dos EUA à economia síria, bastante interligada ao Líbano, incluindo o sistema bancário mencionado; a destruição física, danos e paralisação portuária causada pela explosão.
O Líbano sofre, por exemplo, com a falta de combustível, já que, historicamente, seu principal fornecedor era a Síria. Hoje, esse comércio é bastante dificultado, devido às sanções contra a economia síria, por conta de sua guerra civil. O que leva ao quinto fator da crise: os gastos bélicos cada vez maiores pelos diversos atores libaneses, em um processo que é muito difícil de ser avaliado.
Estado dentro do Estado
Uma rápida busca online permite ao leitor saber o orçamento militar dos EUA, da França, do Japão, de uma série de países. No caso do Líbano, isso é mais difícil. O quanto da economia libanesa é gasto em armamentos não depende apenas do orçamento das forças armadas, mas também dos gastos de todas as milícias e grupos paramilitares, de todas as vertentes políticas e grupos sectários, cristãos, sunitas e xiitas.
O leitor precisa deixar de lado qualquer explicação simples sobre o Hezbollah. Não se trata apenas de partido político, de milícia paramilitar, de grupo extremista, de qualquer um desses termos. Hoje, o Hezbollah é tudo isso junto, é praticamente um “Estado dentro do Estado”, com organização e autoridade própria, um orçamento independente e forças armadas próprias.
As estimativas são de cerca de quinze mil combatentes na ala armada do Hezbollah, contando com um vasto arsenal. Não são apenas armas pessoais, como fuzis, mas milhares de foguetes, peças de artilharia, drones, mísseis, carros de combate blindados, toda uma estrutura similar à de um exército, com veteranos de diferentes conflitos, como as guerras na Síria e no Iêmen.
O “Estado dentro do Estado” tem no Irã o seu principal aliado, uma aliança movida não somente pelo xiismo, mas também por terem um inimigo em comum, Israel. O Hezbollah foi criado em 1985, como reação à intervenção israelense na Guerra Civil Libanesa. O grupo recebe armamento e instrução do Irã que, por sua vez, consegue ter um aliado literalmente na fronteira de Israel.
Conflito interno
Como forma de balancear essa influência, o exército libanês recebe armamento e aportes dos EUA e da França, com financiamento saudita. Em novembro de 2014, por exemplo, uma cooperação triangular foi assinada entre os governos francês, saudita e libanês. A França forneceu três bilhões de dólares em armamento ao Líbano, pagos pelos sauditas para preparar as forças regulares do Estado libanês.
O exército libanês é, teoricamente, uma das poucas instituições universais do país, sem divisão sectária, mas, na prática, os cristãos possuem profunda influência na instituição. É muito claro que, numa eventual guerra civil, duas das principais forças envolvidas serão o exército e o Hezbollah, e dificilmente estarão do mesmo lado. Sem mencionar os diversos grupos menores. Esse é o nível de tensão que se chegou no Líbano.
É possível que, sem a missão da ONU para manutenção da paz, o conflito já tivesse sido deflagrado. Nenhum dos atores locais quer correr o risco de atrair mais pressão internacional contra si. Seu mandato, entretanto, precisa ser renovado todo ano. O Brasil, atualmente, comanda o componente naval da missão, com a tarefa de coibir o tráfico de armas para dentro do Líbano.
O Líbano está numa encruzilhada histórica. As feridas da guerra civil que durou quinze anos nunca foram totalmente curadas e o sistema sectário do Estado favorece a radicalização, não o diálogo. Quando centenas de milhares de pessoas na pobreza já sentem que não têm nada a perder e que as armas podem ser a solução, o vulcão pode entrar em erupção. Só não sabe-se exatamente quando.
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Peço desculpas ao leitor pela ausência da coluna na última sexta-feira, ordens do departamento médico.
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