“Quem controla Istambul controla a Turquia”. Não, a frase não é do autor da coluna, é do atual presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. O cada vez mais autoritário presidente foi prefeito da maior cidade turca, e quarta maior do mundo, entre 1994 e 1998, o que catapultou sua carreira política. Em 2003 ele assumiu seu primeiro mandato como primeiro-ministro da então parlamentarista Turquia e, desde então, ele é a autoridade central do país. Por esse raciocínio, Erdogan deve estar preocupado com o futuro.
No dia 31 de Março, Istambul, assim como o restante da Turquia, passou pelas eleições locais. Ekrem İmamoğlu, do Partido Republicano Popular (CHP, na sigla em turco), venceu com 48,77% dos votos, cerca de quatro milhões de eleitores. Ele derrotou Binali Yıldırım, do partido de Erdogan, Justiça e Desenvolvimento (AKP), que ficou com 48,61% dos votos. A margem de diferença estreitíssima proporcionou um recurso jurídico do AKP, exigindo uma recontagem. Junto com isso, uma pesada retórica.
Repetir até dar certo
Erdogan e seu partido afirmaram que irregularidades eleitorais foram gerais, que pessoas votaram duas vezes, que imigrantes irregulares votaram. Todo tipo de chavão quando se faz uma acusação do tipo. Além disso, uma série de alegações de que o movimento de Fethullah Gülen esteve envolvido com as fraudes. Gülen, um teólogo muçulmano residente dos EUA, é o principal rival político de Erdogan, após o azedar da relação entre os dois antigos aliados. Claro que nenhuma dessas alegações era acompanhada de alguma prova.
Erdogan e seu partido não precisam fornecer evidências. Eles controlam a maior parte da mídia, do judiciário e da polícia. Qualquer voz dissonante é calada sob a justificativa de ser partidário de Gülen e o até hoje não esclarecido evento de Julho de 2016 fortaleceu a posição de Erdogan. Supostamente um golpe contra o então premiê, a ação fracassou e foi usada para legitimar uma série de expurgos dentro do aparato de Estado e da sociedade turca. Com a ocasião foi declarado um “estado de emergência”.
O estado de emergência foi substituído por uma nova lei “anti-terror”; ambos os mecanismos legais foram usados para justificar a prisão de quase oitenta mil pessoas e a demissão de mais de cento e sessenta mil funcionários públicos. Dentre eles, quase três mil juízes; desses, 755 foram presos. E o uso do termo “supostamente” é justificado pois ainda assim é possível que toda essa repressão seja originada de uma farsa, uma operação de bandeira falsa, uma tentativa de golpe ensaiada pelo próprio Erdogan.
Não é possível afirmar nada com garantias, o que é evidente é que Erdogan foi o maior vitorioso desde então. Dezenas de jornais, canais de televisão e de rádio, editoras e revistas foram fechadas. E o termo não é uma hipérbole. Sem falar na perseguição contra a liberdade de ideias e de cátedra; mais de trinta mil profissionais de educação foram perseguidos, presos, demitidos ou proibidos de atuar profissionalmente. O tipo de expurgo que antecede governos autoritários, sob a tênue justificativa de se livrar “do mal”.
Uma nova eleição
Com tudo isso, não é surpreendente que o partido governista conseguiu anular a eleição de Istanbul na qual foi derrotado. Alguns funcionários eleitorais foram presos por causa de uma suposta urna com onze mil votos fantasmas. Mesmo que alguém queira dar um voto de confiança ao que um governo autoritário alega, a quantia de votos não mudaria o resultado final. Então, no último dia 23 de Junho, foi realizada uma nova eleição em Istambul. E aí sim ocorreu o que é surpreendente: o partido governista perdeu de novo.
Dessa vez com uma margem ainda maior de votos. İmamoğlu ficou com 54,21% dos votos, o que é explicado por dois motivos. O primeiro, mais óbvio. A manobra do governo motivou um ligeiro comparecimento maior dos eleitores. Enquanto na primeira eleição compareceram 83,9% do eleitorado, na mais recente o comparecimento foi de 84,43%. O segundo motivo é o principal, entretanto: o candidato governista teve menos votos! O AKP perdeu mais de 210 mil votos, um número considerável em uma eleição tão apertada.
Uma questão de suma importância nessa derrota eleitoral é definir quem é o CHP. O partido é, de certa maneira, um antônimo de Erdogan. O presidente, que aproveitou o decreto de emergência para mudar o parlamentarismo turco para um presidencialismo centrado em sua figura, é cada vez mais um defensor da presença religiosa na sociedade turca. Inicialmente um democrata conservador, hoje Erdogan é o maior inimigo da herança kemalista da Turquia.
O kemalismo referencia Mustafá Kemal Ataturk, o fundador da república da Turquia. Baseado em pilares de secularismo e de modernização do Estado, o kemalismo foi um dos garantidores de uma Turquia secular nos últimos cem anos. Muitos dos milhares de professores perseguidos foram substituídos por escolas religiosas, por exemplo. Outro exemplo: a Turquia, de maioria muçulmana, teve uma presidente mulher antes que muitas democracias ocidentais. O kemalismo é a velha ideia de que a religião é algo privado.
E essa bandeira é a principal bandeira do CHP. A de uma defesa da Turquia secular e pró-Europa, não um governo cada vez mais religioso e que busque reverenciar o passado otomano; cabe lembrar que o sultão da Porta Sublime era também o califa do Islã. A identidade religiosa estava, no período otomano, muitas vezes acima da identidade nacional ou estatal. Então é uma retomada de um debate que estava adormecido por décadas, atrás de uma suposta estabilidade republicana garantida pelas forças armadas.
Devagar com o entusiasmo
E a bandeira do kemalismo é bem mais sedutora e apropriada para grandes cidades, como Istambul. Uma população mais cosmopolita, habituada ao contato com as diferenças, como turistas ou funcionários de embaixadas estrangeiras. Nas três maiores cidades da Turquia, foi o CHP o vencedor. Manteve o governo da turística İzmir, no Egeu, e derrotou o AKP na histórica Istambul e na capital Ancara. No cenário mais amplo, entretanto, o AKP ainda é o maior partido por municípios da Turquia.
Dos trinta governos metropolitanos, o AKP levou quinze, o CHP ficou com onze. Dos 1351 municípios “comuns”, o AKP venceu em 742, mais da metade, sendo hegemônico no interior da Turquia e na Anatólia. O CHP ficou com reles 241, não muito à frente do Movimento Nacionalista, com 233, um movimento mais conhecido pelo seu braço paramilitar, os Lobos Cinzentos, e partido que é uma espécie de “linha auxiliar” mais radical do AKP. Ou seja, embora o CHP, moderado, tenha vencido em locais importantes, está longe de ter conquistado uma hegemonia na Turquia.
Claro que a derrota eleitoral pode servir para o governo alegar que não é autoritário; “vejam, aqui tem eleições e a oposição até consegue vencer” – o que não altera em nada o autoritarismo do governo turco. O principal resultado da eleição foi um golpe na imagem e no prestígio de Erdogan. De intocável para alguém questionado nas três maiores cidades e na capital histórica do país, a Segunda Roma. Resta saber se a frase de Erdogan sobre o controle de Istambul vai se aplicar ao seu próprio legado político.
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