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Afinal, o que há de apropriado e de errado nas falas do presidente Lula sobre o Tribunal Penal Internacional? Lula esteve na Índia, para a cúpula do G20, no último final de semana. Na ocasião, o Brasil recebeu a presidência do G20, com a próxima cúpula programada para o Rio de Janeiro, em 2024. Nesse contexto, Lula foi perguntado sobre o TPI por um canal de televisão indiano e foi o início de uma série de polêmicas.
Vladimir Putin, presidente da Rússia, não foi à cúpula do BRICS, em agosto, na África do Sul, nem à cúpula do G20, na Índia. Putin tem contra si um mandado de prisão pelo TPI, acusado do crime de guerra de deportação ilegal e transferência forçada de crianças. Sua ausência em Johanesburgo se deu pelo fato da África do Sul ser signatária do TPI. Se ele fosse ao país, poderia ser preso.
O governo sul-africano tentou costurar um salvo conduto para permitir a presença de Putin no país. Alguns estudiosos de Direito Internacional alegam que, como chefe de Estado, Putin teria imunidade. Tais conversas fracassaram, inclusive por questões internas da África do Sul, como o estado de animosidade entre Executivo e Judiciário devido aos casos de corrupção envolvendo o ex-presidente Jacob Zuma e o atual Cyril Ramaphosa.
O fato é: Putin não foi a Joanesburgo e participou de maneira online da cúpula, com a Rússia representada por Sergei Lavrov. No mínimo, a presença de Putin seria um constrangimento ao governo sul-africano. Putin também não foi para a Índia. A Índia não é parte do Estatuto de Roma, o tratado que estabelece o TPI, mas também poderia haver certo constrangimento político.
Por exemplo, em 2017, o criminoso de guerra sudanês Omar al-Bashir esteve na Turquia, que não é parte do TPI, e não foi preso, embora o episódio tenha gerado repercussão negativa em relação ao governo turco. Devido a esses episódios, Lula foi perguntado, no sábado, sobre a eventual presença de Vladimir Putin na vindoura cúpula do G20 no Rio de Janeiro.
Lula e Putin
Lula respondeu que "Putin pode ir tranquilamente para o Brasil" e que "se eu for o presidente do Brasil e ele for ao Brasil, não há por que ele ser preso". Dias depois, Lula se corrigiu: "Não sei se a Justiça brasileira vai prender, isso quem decide é a Justiça, não é o governo nem o Parlamento, é a Justiça que vai decidir." Esses foram os primeiros erros de Lula em relação ao TPI.
Primeiro, um péssimo timing da declaração. A acusação a que Putin responde é séria e a resposta de Lula potencialmente diminuiu isso. Também fez parecer que as ausências de Putin foram opções de Ramaphosa e de Modi. Segundo, a substância de declaração. Não se trata de decisão simples ou autocrática, como o próprio Lula observou em sua correção, dependendo principalmente do Judiciário.
Não se trata de achar que Lula deveria ter ameaçado Putin de prisão. A resposta mais simples e diplomática teria dado conta, ter dito que é um tema para o Judiciário brasileiro avaliar mais para frente, quando estivermos no período da cúpula. Lula preferiu “matar a bola no peito”, em uma analogia futebolística como ele gosta, e responder como se fosse uma questão que coubesse apenas a ele.
A polêmica poderia ter acabado aí, mas, junto com a correção, Lula questionou o próprio TPI. "Inclusive, quero estudar muito essa questão desse Tribunal Penal porque os EUA não é signatário dele, a Rússia não é signatária. Então, eu quero saber porque que o Brasil virou signatário de um tribunal que os EUA não aceita. Por que que nós somos inferiores e temos que aceitar uma coisa?". "Eu nem sabia da existência desse tribunal".
Discussão sobre o TPI
Aqui temos algumas discussões diferentes. Novamente, Lula errou no teor de suas declarações, como dizer que “nem sabia da existência” do TPI. Em governos Lula anteriores, o Brasil defendeu o fortalecimento do TPI e, sob Lula, o Brasil concluiu a indicação da única brasileira que foi jurista da corte, Sylvia Steiner, cujo processo de indicação começou ainda sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso.
Outra questão é tratar de uma eventual saída do TPI como algo simples. Não há planos para isso e seria necessária articulação política interna também, já que o Estatuto de Roma é ratificado e a participação brasileira é prevista na Constituição. No texto original, “Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos” e também em trecho incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004.
“O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. Além disso, os avanços internacionais de Direitos Humanos são importantíssimos em países como o Brasil, que passaram por ditaduras e onde a violação de Direitos Humanos é, infelizmente, costumeira. Pela via internacional se conseguem também avanços domésticos.
No caso brasileiro, talvez o melhor exemplo seja a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que representou avanços internos mesmo com todos os limites do Direito Internacional. Uma terceira discussão é abordar os limites do TPI e do Direito Internacional como um todo, aspecto por vezes abordado aqui em nosso espaço, criticando a visão idealizada que por vezes aparece do Direito Internacional.
Tribunal assimétrico
Sim, o TPI é limitado e assimétrico. Apenas 123 países são parte do TPI e, desses, dos nove países com armas nucleares do mundo, apenas França e Reino Unido estão no tribunal. Essa assimetria se liga à hipocrisia de países que dizem serem defensores dos Direitos Humanos e da democracia, mas usam o Direito Internacional de acordo apenas com seus interesses, sendo interesse a palavra chave na política internacional.
Exemplos são as invasões de Iraque, em 2003, e Ucrânia, em 2022, dois países soberanos e duas agressões à margem de qualquer mecanismo internacional. No caso da principal potência do mundo, os EUA, seus diferentes governos, independente de partido, por diversas razões, evitam se comprometer a tratados internacionais. Por exemplo, os EUA são o único país do mundo não signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança.
Além da hipocrisia, a assimetria do TPI também motiva críticas como ao fato de que o tribunal é mais utilizado em relação aos países africanos. A União Africana, inclusive, já estuda criar um tribunal próprio e sair do TPI. Todas essas discussões sobre o TPI são necessárias, entretanto, não validam as declarações de Lula, são assuntos diferentes, e assim devem ser encarados.
Algumas pessoas estão, por erro ou distorção, misturando as duas coisas. Propor uma reforma do TPI ou questionar sua eficácia é uma coisa, é um tema importante; dizer que "Putin não será preso" e que seria "inferior" ser membro do TPI é outra coisa, errada. Uma abordagem realista da política internacional também se faz necessária, mas não o cinismo de algumas potências.