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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Quem é quem na guerra fria do Oriente Médio? Parte 2 – O Irã

Mulher caminha por uma rua de Teerã, 8 de julho (Foto: AFP)

O emaranhado de relações no Oriente Médio é muitas vezes mencionado, porém, poucas vezes explicado. Neste e em alguns textos próximos essa coluna vai continuar o “guia rápido” para compreensão dos atores envolvidos na atual guerra fria entre Arábia Saudita e Irã na região. Um choque geopolítico, ideológico e religioso que está ligado à diversos conflitos locais, com interesses de grandes potências e no centro das atenções mundiais.

A primeira parte, sobre sauditas, você vê no link. E não é só pelo potencial destrutivo e mortal do conflito, mas pela relação com o petróleo, uma das principais fontes energéticas do mundo. Flutuações de preço e o próprio uso do óleo como uma ferramenta geopolítica podem fazer com que um espirro no Golfo Pérsico cause uma gripe do outro lado do globo. Os choques do petróleo da década de 1970 são a lembrança mais fácil dessa questão.

Então, quem é quem nesse grande tabuleiro médio-oriental? Quais os atores, quais seus interesses? E esse é um ponto importantíssimo de se lembrar: na geopolítica e na política internacional existem interesses. Claro, tais interesses podem ser contraditórios com os discursos que um governo adota, ou entrarem em conflito com os escrúpulos da consciência, já diria Jarbas Passarinho, mas ainda são interesses.

Irã, outra potência regional

O Irã é o segundo maior país do Oriente Médio, atrás justamente dos rivais sauditas nesse quesito. Diferente dos árabes, entretanto, o Irã possui uma das vinte maiores populações do mundo, mais de oitenta milhões de pessoas, mais do que o dobro do número de sauditas. E, assim como os sauditas, o Irã é uma potência petrolífera, dentre as cinco maiores reservas e cinco maiores produtores; nesse caso, bastante atrás dos sauditas.

Apenas um país árabe, o Egito, possui uma população maior que o Irã, que é também a maior população xiita do mundo, a vertente do Islã seguida por cerca de 10% dos muçulmanos, algo em torno de 160 milhões de pessoas. A soma de tamanho do território e da população, além de uma variedade de climas, solos e recursos naturais, faz com que o potencial econômico iraniano seja muito maior do que de qualquer outro país do golfo.

Enquanto os sauditas dependem do petróleo e dos investimentos derivados da riqueza petrolífera, os iranianos possuem uma economia muito mais diversa. O Irã é uma potência agrícola, incluindo vegetais, frutas e também iguarias com razoável preço internacional, como a maior produção mundial de pistache. O país é um dos maiores produtores metalúrgicos do mundo, além de outros destaques industriais. Inclusive bélica.

Enquanto os sauditas compram muitos armamentos pelo mundo, o Irã, cerceado por sanções internacionais, precisou, e conseguiu, desenvolver alternativas locais. Claro, a indústria bélica iraniana não chega perto das maiores potências, mas o país desenvolveu seus próprios sistemas de mísseis e de radares, drones, armas pessoais e versões locais melhoradas de veículos blindados e aviões usados pelo governo do Xá.

Outro exemplo é que o Irã desenvolveu submarinos totalmente nacionais. Não é possível questionar o status de potência regional do Irã mesmo após décadas de sanções diversas. Além disso, o potencial econômico do país caso se livre das amarras das sanções internacionais é um ótimo exercício de imaginação sobre os interesses do Irã e também dos interesses estrangeiros em se aproveitar desse desenvolvimento econômico.

O que os iranianos desejam?

Pensando no atual governo iraniano, o interesse de curto-prazo é justamente se libertar das pesadas sanções dos EUA, que remetem ao ano da revolução, 1979. Logo após a assinatura do acordo nuclear com as potências europeias, os EUA, a Rússia e a China, o presidente iraniano, Hassan Rouhani, fez um intenso tour de negócios pela Europa. Assinou polpudos contratos de investimentos e de compras de equipamentos.

Isso significa que a Peugeot é uma empresa pró-Irã ou pró-Islã? Longe disso, apenas sabem que, com o fim das sanções, teremos uma economia que crescerá em números altíssimos, com uma população enorme, ansiosa por consumir carros e outros produtos. E isso não é um exercício de imaginação otimista. Em 2016, o único ano em que pode-se dizer que o Irã usufruiu totalmente do acordo, sua economia cresceu 13% no ano.

Já numa perspectiva do Estado iraniano, a posição estratégica do país é o seu maior bem, maior foco e que também causa maior cobiça internacional, historicamente. O planalto iraniano é uma verdadeira ponte que liga mundos diferentes; o subcontinente indiano, as estepes da Ásia Central, o Cáucaso, a planície da Anatólia, o Golfo Pérsico e a Arábia. É por ali que os mundos se cruzam e isso é motivo de disputas sangrentas desde Alexandre.

Ao mesmo tempo que essa localização pode render frutos e destaque, também rende interferências externas e uma preocupação enorme com as fronteiras. Então, pode-se colocar a prioridade número um do Estado iraniano a sua integridade territorial e a de seus vizinhos. Impedir movimentos separatistas dentro do país, como dos árabes mencionados no texto anterior, ou que conflitos sectários externos transbordem para o Irã.

Por isso que o Irã foi um dos mais ativos participantes na luta contra o auto-intitulado Estado Islâmico, o Daesh. Uma milícia radical sunita é um inimigo ideológico por si só do Irã. Além disso, o Daesh provocava duas guerras civis simultâneas dentro de apenas um país, o Iraque, uma envolvendo curdos, e a outra envolvendo a minoria xiita. Um esfacelamento do Estado iraquiano não é o sonho do Irã, ao contrário, é um temor.

Os aliados iranianos

Notar que o Irã foi o maior adversário local do Daesh poderia causar um nó na cabeça de uma pessoa que acompanhe apenas filmes dos EUA, afinal, são dois “bad guys”, vilões habituais. Como já dito antes, é importante desvincular a ideia de um Irã vilão. O Irã, como qualquer Estado, possui interesses e ferramentas para perseguir esses interesses. E nem por isso ele deixa de ser um Estado teocrático, autoritário e repressor.

Assim como não é a proximidade com os EUA que faz com que a Arábia Saudita deixe de ser uma monarquia absolutista, totalitária e igualmente repressora. Voltando ao Irã, quais são seus principais aliados? A maior potência aliada do Irã é a Rússia, uma parceria construída na década de 1990, depois da dissolução da URSS, que era vista como herética e “anti-islâmica” pelo governo do aiatolá Khomeini.

A Rússia precisava de novos e mais parceiros econômicos em meio um cenário de crise e mudanças pós-soviéticas. O Irã precisava de fontes de cooperação tecnológica e militar em um Oriente Médio cada vez mais efervescente pós-Guerra Fria. Juntos, ambos possuem interesses em gás natural, petróleo, infraestrutura de exploração de hidrocarbonetos. Um casamento equilibrado.

Claro que isso é um resumo extremamente objetivo, já que estamos falando de civilizações antiquíssimas; podemos falar de raides pelo Mar Cáspio que remetem ao século X, o inimigo mongol comum, a relação entre Pérsia e os czares, a busca por domínio e expansão russa na região, até chegarmos à disputa entre russos e britânicos pela primazia no Irã, iniciada no século XIX e que durou até a Segunda Guerra Mundial.

Sim, apenas setenta anos atrás o Irã foi ocupado por tropas anglo-soviéticas, para garantir um ponto de contato entre o Cáucaso e o império britânico na Índia; novamente, não se pode esquecer da posição geográfica do Irã. A “neutralidade” iraniana foi pauta de uma das conferências dos Big Three durante a guerra, assim como a manutenção dos interesses britânicos no petróleo iraniano.

Hoje, entretanto, esses choques estão deixados no passado. O Irã é um grande comprador de tecnologia e equipamento militar russo, e o comércio entre os dois países se multiplica ano após ano. E não, isso também não é um exagero. De uma relação de um mero bilhão de dólares no início do século, hoje estamos falando de contratos de dezenas de bilhões de dólares em energia, commodities e infraestrutura.

Muito se fala na China como aliada do Irã, o que é um erro; os interesses chineses são puramente econômicos. O Irã possui papel central nos planos de infraestrutura da política de Cinturão e Rota; passando por ali, trens podem transitar da China para a África e para a Arábia. Os chineses dificilmente comprarão uma briga ao lado dos iranianos; se o fizerem, será por sua parceria com Moscou, não com Teerã.

A segunda categoria de aliados iranianos é a dos xiitas. Assim como os sauditas buscam se projetar como os representantes do sunismo, o Irã busca ser visto como o protetor dos xiitas. A diferença é que os xiitas são minorias em quase todos os casos, então, essa é uma carta na manga que é usada de forma que depende muito mais de conveniência do que parte de uma política constante.

Existe uma minoria xiita dentro de um país rival do Irã? Ok, projeta-se a ideia do Irã como protetor do xiismo. Não existe essa minoria nem forma de se aproveitar? Então o Irã é um amigo do mundo muçulmano e membro da Organização de Cooperação Islâmica, independente da vertente. Oras, o segundo maior país xiita do mundo, o Azerbaijão, não possui boas relações com o Irã, por questões fronteiriças.

Dos países árabes, os dois atuais aliados do Irã são países em que xiitas são parte razoável da população e do governo. A Síria e o Iraque. A aliança com a Síria remete à década de 1980, quando a Síria de Assad também era inimiga do Iraque de Saddam Husseim. Já o Iraque “caiu no colo” iraniano após a queda de Saddam; dois terços dos iraquianos são xiitas, incluindo o atual premiê iraquiano.

Os agentes iranianos

É difícil uma tradução clara do termo em inglês proxy; uma guerra “proxy” é uma guerra por procuração, ou seja, quando os atores envolvidos representam outros Estados e potências. Habitualmente, um choque de interesses local ou uma forma de duas potências se enfrentarem indiretamente. Exatamente como os conflitos da Guerra Fria, como a Guerra da Coreia e a guerra civil angolana.

Os proxies de um país, então, seriam seus “agentes”, grupos cujos interesses, comportamento e manutenção são diretamente congruentes aos da potência maior; ao menos em relação ao conflito. E o conflito entre Irã e Arábia Saudita é repleto de proxies, agindo para projetar os interesses das duas potências regionais em diferentes teatros de operação. E o Irã também possuí diversos proxies que operam dentro de território saudita.

O mais conhecido é o Hezbollah Al-Hejaz, um grupo hoje já enfraquecido, mas uma filiação na península arábica do Hezbollah; Hejaz é uma referência geográfica à Arábia. Quando o xeique Nimr Baqir al-Nimr, xiita, foi executado pelos sauditas em 2016, foi sob acusações de ser líder de uma célula terrorista, algo que nunca foi detalhado. O maior proxy iraniano, entretanto, convive dentro do Irã.

É a Guarda Revolucionária Islâmica, um “Estado dentro do Estado” que inclusive coordena o trabalho de outros agentes pela região; a Guarda já foi tema de um texto próprio aqui nesse espaço. Parte dessa influência é a coordenação dos diversos grupos paramilitares xiitas que operam dentro do Iraque; algumas estimativas colocam um verdadeiro exército paralelo com cerca de sessenta mil integrantes.

Esses grupos são politicamente representados pela Badr (“Lua Cheia”), uma organização que é também um partido político com vinte e dois assentos no parlamento iraquiano. Muitos desses grupos foram e são os principais inimigos de tropas dos EUA no Iraque, com algumas centenas de soldados mortos por milícias financiadas pelo Irã. Caso similar é o do grupo Al-Ashtar, um grupo xiita financiado pelo Irã no Bahrein, governado por sunitas.

Mais ao sul temos os houthis iemenitas, mantidos pelo Irã como uma farpa dentro do dedo dos países do golfo. Por um valor baixíssimo, o Irã mantém guerrilhas em um relevo extremamente favorável contra os imensos gastos militares sauditas. Os houthis dificilmente vencerão a guerra, mas incomodam os vizinhos. Historicamente as relações entre Irã e iemenitas é irrisória, o interesse é puramente movido pela conveniência.

Finalmente, temos o mais poderoso proxy iraniano, o Hezbollah, um dos principais partidos políticos do Líbano e outro “Estado dentro do Estado”. Uma força militar nada desprezível e que conta com um arsenal de mísseis e foguetes mirados em Israel. O Hezbollah certamente merece um texto próprio, mas é importante perceber o papel que o grupo exerce na estratégia iraniana para o tabuleiro do Oriente Médio.

O Irã antagoniza Israel não apenas por questões ideológicas; é uma maneira de impedir uma maior coesão nos rivais árabes. Se virar contra o Irã seria, indiretamente, apoiar Israel. Ao mesmo tempo, antagonizar Israel não é recomendável; os israelenses poderiam realizar ataques aéreos devastadores contra o Irã, que teria poucas chances viáveis de retaliar ou sequer se defender.

Quando o risco israelense, entretanto, envolve uma guerra em sua fronteira, mais uma guerra civil no Líbano e uma chuva de mísseis e foguetes contra suas cidades, o governo de Israel vai pensar duas vezes antes de um ataque. E essa é a função principal do Hezbollah, que recebe pesados investimentos sauditas: servir de dissuasão contra ações israelenses que mirem o Irã, fazer com que o preço seja muito alto.

Para evitar excessos, um texto muito extenso (como já feito pelo autor em outras ocasiões) ou algo que termine por ficar confuso, a coluna de hoje ficará restrita aos iranianos e seus aliados. O lado saudita já foi visto e o próximo texto tratará dos demais interessados regionais. A questão aqui é desenhar a estratégia iraniana de usar grupos e aliados para impedir que seu vasto território seja comprometido.

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