O emaranhado de relações no Oriente Médio é muitas vezes mencionado, porém, poucas vezes explicado. Neste e em alguns textos próximos essa coluna vai continuar o “guia rápido” para compreensão dos atores envolvidos na atual guerra fria entre Arábia Saudita e Irã na região. Um choque geopolítico, ideológico e religioso que está ligado à diversos conflitos locais, com interesses de grandes potências e no centro das atenções mundiais.
A primeira e a segunda parte, sobre sauditas e iranianos, respectivamente, já foram publicadas. E não é só pelo potencial destrutivo e mortal do conflito, mas pela relação com o petróleo. Flutuações de preço e o próprio uso do óleo como uma ferramenta geopolítica podem fazer com que um espirro no Golfo Pérsico cause uma gripe do outro lado do globo. Os choques do petróleo da década de 1970 são a lembrança mais fácil dessa questão.
Então, quem é quem nesse grande tabuleiro médio-oriental? Quais os atores, quais seus interesses? E esse é um ponto importantíssimo de se lembrar: na geopolítica e na política internacional existem interesses. Claro, tais interesses podem ser contraditórios com os discursos que um governo adota, ou entrarem em conflito com os escrúpulos da consciência, já diria Jarbas Passarinho, mas ainda são interesses.
Os interessados
Estabelecido que temos duas coalizões antagônicas. De um lado, sauditas e seus agentes, mais o Paquistão e os países do Conselho de Cooperação do Golfo, contando com o apoio dos EUA. Do outro lado, o Irã, também com seus agentes, mais Iraque e Síria, além do apoio da Rússia. A guerra fria das duas potências regionais, entretanto, afeta toda a região, e até atores extra-regionais. Cada um, novamente, com seus interesses.
Tais interesses podem até aproximar alguns atores de um dos dois protagonistas da disputa, mas não ao ponto de poder se classificar a relação como uma aliança. Muitas vezes trata-se de um interesse comercial, ou de uma disputa interna sobre qual lado apoiar. O importante de se ter em mente é que não se trata de uma briga entre duas facções perdidas num rincão do mundo, mas uma relação que envolve vários outros peso-pesado.
Catar
O pequeno emirado do Catar é, curiosamente, um elemento-chave nessa disputa, de forma desproporcional ao seu tamanho. O país, propriedade da família al-Thani, é de cultura árabe e sunita, localizado no Golfo Pérsico, integrante do Conselho de Cooperação do Golfo. Ou seja, todos os elementos de um aliado saudita, certo? Não necessariamente. Em 2017 o país foi suspenso dos órgãos internacionais árabes e bloqueado pelos vizinhos.
Bloqueado literalmente, incluindo sua única via terrestre de ligação com o mundo, via península arábica. O motivo do rompimento foi um alegado “apoio catari” ao terrorismo. No fundo, os motivos eram outros dois: as relações com o Irã e a existência da rede Al Jazeera, com uma cobertura crítica das ditaduras árabes durante a chamada Primavera Árabe; claro, como se o Catar fosse exemplo de democracia.
O Catar se defendeu afirmando que busca apenas ser uma ponte entre árabes e persas, e que não pode abdicar desse relacionamento por sua relação geográfica. Além disso, afirmou apoiar grupos islamistas, como a Irmandade Muçulmana, mas não o terrorismo; inclusive, o país possui a maior base dos EUA na região, ponto central de diversas operações da chamada “Guerra ao Terror” contra a al-Qaeda e o Daesh.
O Catar serve também de sede das conversas para o estabelecimento de um “novo Hamas”, um grupo mais moderno e que seja reconhecido como ator político legítimo; até o momento isso não aconteceu, sem o repúdio da carta fundadora que prega a destruição de Israel. Para a solução desse bloqueio, os países árabes enviaram um ultimato ao Catar, que o rejeitou como uma intervenção estrangeira no país.
O resultado do bloqueio foi uma maior proximidade catari com Turquia, Índia e Irã; os turcos chegaram ao ponto de anunciar o envio de tropas para o Catar, e indianos e iranianos se tornaram os maiores fornecedores de produtos agrícolas para os cerca de 2,6 milhões de habitantes do Catar. Em meio essa disputa, com uma das maiores reservas de gás natural do mundo, o que deseja o governo de Doha, então?
Justamente conseguir manter essa autonomia e independência. O Catar, repete-se, possui uma influência desproporcional ao seu tamanho. Bilhões de dólares da monarquia vão para atividades que gerem algum retorno de propaganda, como a propriedade do clube de futebol francês PSG, a manutenção da vasta rede Al Jazeera, o sediar de uma Copa do Mundo, uma empresa aérea, financiamento de bolsas de estudo, dentre outros.
O governo catari pensa que, apenas pela construção de uma vasta rede de relações e presença mundial, ele consegue ser mais do que um peão nesse tabuleiro do Oriente Médio, com vizinhos poderosos e influentes, além de muito maiores; as forças armadas cataris, por exemplo, possuem menos de 12 mil homens. Entre sauditas e iranianos, o Catar quer poder ficar com ambos. Cabe ver se seus vizinhos árabes aceitarão.
Israel
O interesse de Israel quando pensa-se na sua vizinhança é, em primeiro lugar, segurança. Em segundo lugar, segurança. Em terceiro, quarto, quinto e sexto lugares, segurança. Até a Guerra do Yom Kippur, em 1973, esse interesse podia ser expresso de maneira mais crua: sobrevivência. Não é mais o caso, com duas fronteiras do país estabilizadas, a Síria destruída como Estado, a aliança com os EUA e um razoável arsenal nuclear.
Nesse sentido, o interesse de Israel é impedir que surja alguma liderança no “mundo muçulmano” que consiga amalgamar seus vizinhos contra a segurança do país. O papel que Nasser possuiu e Saddam Hussein e Muammar Khadafi tentaram ocupar. Hoje, para Israel, essa ameaça vem do Irã. Contra essa ameaça, então, Israel busca evitar que o país se consolide como uma liderança muçulmana.
Israel, então, constrói relações com a Arábia Saudita; as boas relações com os EUA são algo que aproximam os dois países. Ainda assim, é importante lembrar que Israel e os países árabes do golfo não possuem relações diplomáticas normalizadas, apenas extra-oficiais e comerciais. Além disso, se há um país muçulmano que poderia ser um desafio militar aos israelenses, são os sauditas.
Ainda assim, o velho ditado de inimigo do meu inimigo é meu amigo se aplica. Sauditas e israelenses se aproximam contra o Irã, podendo até mesmo cooperar em um eventual conflito. Como mencionado aqui nesse espaço, os sauditas já usam tecnologia israelense para “monitorar” vozes dissidentes contra a monarquia, como denunciado pela Noruega. Outra passagem recente foi o uso de espaço aéreo saudita por Netanyahu.
Curiosamente, é importante relembrar que o Irã antagoniza Israel justamente para evitar a criação de uma coalizão mais ampla em torno dos sauditas, como dito no segundo texto dessa série. Irã e Israel se encaram, mas nenhum dos dois pretende piscar em algum momento; Israel somente o fará para impedir uma eventual arma nuclear iraniana. Até lá, ambos estão mais interessados em aliados do que num conflito.
Palestina
O caso da Palestina é dividido. A Autoridade Nacional Palestina, liderada por Mahmoud Abbas e sediada em Ramallah, é historicamente próxima dos árabes seculares; entretanto, nesse conflito, não temos uma facção árabe secular importante. A aproximação, nesse caso, acaba sendo com os árabes sauditas, especialmente em torno da questão de Jerusalém. Não muito além.
Os sauditas não estão dispostos a colocar as relações momentâneas com Israel em risco pelos palestinos; historicamente, inclusive, os sauditas foram os que adotaram ferramentas mais indiretas no conflito com Israel. A “linha vermelha” saudita é Jerusalém. Em recente cúpula da Organização da Cooperação Islâmica, em Meca, seu documento final deixou isso explícito; não aceitarão uma soberania israelense sobre a cidade.
Nesse sentido é de interesse saudita manter relações amistosas com a Palestina, servindo como eventual mediadora com os EUA e usando essa bandeira para deter interesses israelenses. Por outro lado, na Faixa de Gaza quem governa é outro ator palestino, o Hamas, grupo islamita sunita ligado à Irmandade Muçulmana. Por causa desse elo, inimigo do Egito e, em menor grau, dos sauditas.
Paradoxalmente, então, o Hamas tem se aproximado do Irã. Embora ideologicamente bastante distantes, possuem os inimigos em comum, ao menos nesse momento. A realização da cúpula do Hamas no Catar, como mencionado, foi um dos elementos do bloqueio ao emirado. A relação é tão estranha que Hamas e Irã são aliados contra Israel e Egito, mas lutaram um contra o outro na guerra da Síria.
Turquia
O caso turco é o mais fácil e o mais difícil de explicar. É o mais fácil pois os objetivos turcos em relação ao conflito são claros: impedir que tanto Irã quanto os sauditas triunfem ao ponto de se tornarem uma hegemonia na região. Para Ancara, o ideal seria um eterno atrito, sem vencedores, nem perdedores, apenas desgaste mútuo, sem criar ameaças na região e também sem causar um conflito em larga escala.
A Turquia é, então, o caso mais complicado de desvendar, já que esse interesse “simples” exige um equilíbrio delicadíssimo de forças, que pode ser perturbado em qualquer momento. A Turquia, inicialmente aliada aos sauditas na Síria, distanciou-se e cultivou boas relações com Teerã; tais boas relações, entretanto, são de ocasião, com frequentes insinuações e atritos.
A Turquia, nos últimos vinte anos, alterna momentos de proximidade estratégica com Israel com períodos de apoio ao Hamas e antagonizar o governo Netanyahu. Um morde e assopra de acordo com a necessidade. A Turquia, com o perdão da redundância, é um país de turcos, ou seja, sem os laços árabes com sauditas e o golfo. Ao mesmo tempo, a maioria da população é sunita, o que a afastaria do Irã.
Não que a religião por si seja um critério, afinal, a Turquia e o Azerbaijão são aliados próximos, sendo que a população azeri é, em maioria, xiita. E o Azerbaijão não cultiva boas relações com o Irã, apesar de compartilharem uma vastidão de laços culturais, já que os iranianos são aliados da Armênia. Algo que distancia Teerã também de Ancara. Se esse parágrafo fosse um gráfico talvez ficasse ainda mais confuso.
Outro pilar do interesse turco na região é impedir qualquer forma de organização autônoma para as comunidades curdas dos vizinhos. A Turquia teme que isso seja o trampolim do fortalecimento do separatismo curdo dentro de seu próprio território. Novamente, uma relação delicada. Por exemplo, para evitar um possível Curdistão, a Turquia apoia veementemente a integridade territorial do Iraque e da Síria.
Ao mesmo tempo em que declara esse apoio, Ancara não se priva de violar a soberania de ambos os vizinhos quando achar necessário, realizando operações militares contra os grupos curdos dentro dos vizinhos. Mais Bagdá e Damasco, menos Mosul e Qamishli. No fundo, a Turquia quer continuar sendo uma potência regional basilar no Oriente Médio. Parte dessa missão é impedir que seja superada pelas outras potências.
Para evitar excessos, um texto muito extenso (como já feito pelo autor em outras ocasiões) ou algo que termine por ficar confuso, a coluna de hoje ficará restrita interessados de fora do Oriente Médio. O próximo texto tratará dos palcos dessa disputa, como o Líbano, o Iêmen e o Afeganistão. A questão aqui é desenhar quem quer o quê dessa guerra fria médio-oriental, relações que passam das dezenas de bilhões de dólares.