O emaranhado de relações no Oriente Médio é muitas vezes mencionado, porém, poucas vezes explicado. Neste e em alguns textos próximos essa coluna vai continuar o “guia rápido” para compreensão dos atores envolvidos na atual guerra fria entre Arábia Saudita e Irã na região. Um choque geopolítico, ideológico e religioso que está ligado à diversos conflitos locais, com interesses de grandes potências e no centro das atenções mundiais.
A primeira e a segunda parte, sobre sauditas e iranianos, respectivamente, já foram publicadas. E não é só pelo potencial destrutivo e mortal do conflito, mas pela relação com o petróleo. Flutuações de preço e o próprio uso do óleo como uma ferramenta geopolítica podem fazer com que um espirro no Golfo Pérsico cause uma gripe do outro lado do globo. Os choques do petróleo da década de 1970 são a lembrança mais fácil dessa questão.
Posteriormente, tratou-se dos interesses de outros países envolvidos, tanto da região quanto de fora da região. Na quinta e penúltima parte dessa série de textos, cabe um olhar aos locais que são alvos desses interesses, objetos de desejo e de tensão. Seja para projetar os próprios interesses ou para deter as da potência rival. Um processo que também causa efeitos colaterais nocivos, com populações vizinhas pagando o preço da tensão.
Afeganistão
Talvez o leitor se pergunte o motivo de tantas guerras pelo Afeganistão por toda a História; desde Alexandre até os EUA, passando por persas, mongóis, o império britânico, russos e diversos outros. O tema possivelmente merece um texto próprio mas, nesse caso, a importância do Afeganistão para sauditas e iranianos é a mesma que explica todos esses conflitos: a localização do país.
O Afeganistão é uma ponte que liga o planalto iraniano, o subcontinente indiano, as planícies da Ásia central e os desertos chineses. Como visto na terceira parte dessa série de textos, o Afeganistão é parte de projetos de infraestrutura ligando a Índia ao Irã, por exemplo. Além disso, a sociedade afegã é etnicamente diversa, com comunidades com laços históricos com o Irã e outras com laços com o Paquistão.
O maior grupo populacional do país é o dos pashtun, em maioria sunitas e a maior população do vizinho Paquistão; ao mesmo tempo, um povo de origem indo-persa. Os tadjiques são o segundo maior grupo, também um povo de origem persa. O terceiro maior grupo é o dos hazara, um povo túrquico-mongol; ainda assim, ligados ao Irã, já que a maioria dos hazara são xiitas.
Isso significa que, por maior influência no território, tanto sauditas quanto iranianos contam com grupos internos simpáticos a cada país; importante lembrar que paquistaneses e sauditas caminham bem próximos, uma aliança que remonta desde a década de 1960. E essa disputa entre iranianos e sauditas por maior influência no Afeganistão também não é recente, vem desde a invasão soviética do Afeganistão, em 1979.
Por alguns breves anos, Irã, sauditas, Paquistão e EUA convergiram em torno do mesmo objetivo: fortalecer os grupos islamitas afegãos contra os seculares e seus aliados soviéticos. Após a guerra, os interesses se separaram. O Irã apoiou a moderada e multiétnica Aliança do Norte, enquanto sauditas e paquistaneses apoiaram o islamita sunita grupo do Talibã, que venceu o conflito.
A minoria xiita foi perseguida pelo Talibã, com destaque para um massacre de milhares de pessoa incluindo cerca de vinte iranianos; diplomatas de um consulado local e uma equipe de televisão. Em 1998 o Irã quase invadiu o Paquistão para uma guerra de larga escala contra o Talibã; pressão internacional dissuadiu o governo de Teerã. O governo do Talibã foi reconhecido apenas por três países: sauditas, Paquistão e Emirados Árabes Unidos.
Com a operação da OTAN em 2001 e a queda momentânea do Talibã, o Afeganistão esteve fora do escopo das relações médio-orientais; não “pegava bem” expressar interesses no país, soando um confronto aberto com os EUA. Com o conflito em suas fases finais e cada vez mais conversas de paz para o futuro do Afeganistão, o país voltou ao tabuleiro. O que inclui interesses nas conversas de paz realizadas no Catar.
Em suma, os sauditas desejam um Afeganistão com a maior influência Talibã possível, um país centralizado em torno da maioria sunita e dos grupos próximos ao reino. Já o Irã deseja um país descentralizado, com representatividade das minorias em um governo heterogêneo. Claro que a realidade não é tão simples, com algumas contradições e interesses escusos.
Uma dessas contradições é que o inimigo em comum nos EUA fez Irã e Talibã cooperarem pontualmente em algumas circunstâncias; o impacto dessas relações recentes nas conversas de paz é difícil de mensurar. Outro ponto de interesse é o fato de que o Irã arregimenta afegãos xiitas em suas milícias, incluindo alguns milhares de afegãos que lutam na Síria; lutam contra grupos sunitas, alguns com ligação saudita ou Talibã.
São cerca de três milhões de afegãos vivendo no Irã, refugiados das guerras dos últimos trinta anos. Desses, ao menos metade está em situação legalmente vulnerável, alvos fáceis para chantagens pelo governo. “Se aliste e a nacionalidade de sua família será regularizada”. A política de alistamento de pessoas dessa comunidade acabou intensificando a violência sectária dentro do Afeganistão.
Por exemplo, o grupo sunita fundamentalista Lashkar-e-Jhangvi, que possivelmente possui algum apoio saudita, passou a mirar os afegãos xiitas, acusando-os de “traidores” e demais acusações fundamentalistas. E algo mantido de forma “discreta” é que o Afeganistão foi um dos maiores produtores de papoula e heroína da História recente. Para essa heroína chegar mais rapidamente ao mercado consumidor europeu, ela passará pelo Irã?
Bahrein
O país insular do Bahrein foi parte tanto de califados islâmicos quanto do império persa; em tempos contemporâneos, parte do império britânico. Ainda assim, sob reivindicação iraniana até 1970, quando o governo do Xá e Londres chegaram em um acordo pré-independência barenita. Essa antiga disputa territorial por uma ilha no centro do golfo pérsico não é o único motivo para o país ser um foco de tensão.
Cerca de dois terços da população é xiita, o que os aproxima do Irã. Por outro lado, a família real e a nobiliarquia barenita são sunitas, próximos da casa de Saud. É como um antigo reino europeu de população católica governado por uma dinastia protestante, ou vice-versa. Essa diferença faz com que qualquer demanda política ou socioeconômica esbarre no aspecto religioso.
Em 1981, após a revolução no Irã, um grupo xiita tentou derrubar o governo; desde o episódio os laços com o reino saudita se intensificaram. É o ano do início da construção da Via Rei Fahd, a única conexão entre a ilha do Bahrein e o continente, totalmente financiada e projetada pelos sauditas; Fahd foi o rei saudita entre 1982 e 2005. Em anos posteriores, todos os protestos e levantes contra o governo foram acusados de serem “pró-Irã”.
Isso inclui o levante popular da chamada Primavera Árabe em 2011, que quase derrubou a monarquia al-Khalifa. A população teve que ser reprimida por tropas sauditas, com ao menos oitenta mortos, perante as câmeras internacionais, no mesmo final de semana do grande prêmio de Fórmula Um daquele ano. Desde então o governo tornou-se cada vez mais centralizado e autocrático.
Qualquer reforma social é vista como um suposto ganho iraniano e xiita, tudo isso alimentado por capital saudita, que fez do Bahrein uma das economias que mais cresceu no século XXI. Para o reino de Riade impedir qualquer avanço iraniano no Bahrein é questão de segurança. A ilha está logo ao lado da costa leste saudita, região de população xiita e, principalmente, das reservas de petróleo do reino, como visto no primeiro texto da série.
Iêmen
Historicamente, o Iêmen, como parte da península arábica, possui profundas relações com a política árabe vizinha; onde hoje é a Arábia Saudita. Ao mesmo tempo, a presença inglesa na região e sua localização, como importante no fluxo marítimo entre o Mar Vermelho e o Índico, proporcionaram variedade cultural e econômica no Iêmen. Essa variedade, somada aos aspectos políticos da Guerra Fria, chegou ao ápice entre 1962 e 1990.
É o período em que o Iêmen foi dividido em duas repúblicas; em fronteiras similares às das antigas repúblicas, hoje o país passa por uma guerra civil sectária. O governo de Abdrabbuh Mansur Hadi, que controla as regiões de maioria sunita do país, apoiado pelos sauditas; contra o governo, as milícias houthis xiitas, lideradas por um conselho político chefiado por Mahdi al-Mashat e com apoio iraniano.
Claro, esse é um resumo das alianças, com outros atores envolvidos. O conflito já deixou mais de cem mil mortos e cerca de três milhões de deslocados. A guerra começou em 2015, com um movimento houthi para derrubar o governo Hadi; a capital foi tomada e o presidente fugiu do país. Uma ofensiva saudita, marcada por uma campanha indiscriminada de ataques aéreos, retomou a capital e igualou a situação ao cenário pré-conflito.
O objetivo saudita é garantir sua hegemonia na península, eliminando qualquer grupo organizado xiita ou secular que ameace sua posição, mantendo um governo que, na prática, é seu satélite. O objetivo iraniano é menos refinado. Sabendo que dificilmente triunfará na vizinhança saudita, a intenção é ser uma “pedra no sapato” na fronteira rival, o que inclui ocasionais disparos de mísseis do Iêmen contra alvos dentro do reino saudita.
Para evitar excessos, um texto muito extenso (como já feito pelo autor em outras ocasiões) ou algo que termine por ficar confuso, a coluna de hoje ficará restrita a esses palcos de conflito. O próximo texto, o último, tratará dos palcos restantes dessa disputa, como o Líbano e a população mundial. A questão aqui é desenhar quem quer o quê dessa guerra fria médio-oriental, relações que passam das dezenas de bilhões de dólares.
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