A mais recente cúpula do Brics terminou com a potencial expansão do grupo. No último dia 24, em Joanesburgo, na África do Sul, os cinco países do bloco concordaram em convidar seis países para adesão a partir de primeiro de janeiro de 2024: Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Irã, Argentina, Egito e Etiópia. Agora, é necessário responder à pergunta: com esse potencial novo desenho do bloco, quem ganha e quem perde?
O leitor pode ter notado o uso do termo “potencial”. O que foi determinado é que esses seis países serão convidados, não necessariamente que todos vão aderir ao bloco. Essa observação é ainda mais importante no caso argentino. Embora o país seja convidado, ele passará por eleições presidenciais em outubro e, dos três candidatos com chances de vitória, dois já se pronunciaram contra a eventual adesão.
No caso, Javier Milei e Patricia Bullrich, os dois candidatos de direita e com pautas mais liberais na economia. Será interessante ficar de olho no impacto desse anúncio no processo eleitoral argentino, com o grupo do Brics se tornando tema de campanha. Essa observação serve também para explicitar o aparentemente principal critério no processo de adesão: o tempo de solicitação de adesão.
Critérios
A Argentina, presidida por Alberto Fernández, foi um dos primeiros países que solicitou a entrada, dentre as mais de duas dezenas de candidaturas e interessados. Segundo o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, além do tempo de solicitação, outro critério foi a “importância geopolítica de cada país. O que está em jogo aqui não é a pessoa ou o governo, é o país, a importância do país”.
Ou seja, os novos países foram selecionados sem critérios objetivos, como tamanho ou tipo da economia, algo assim. Dentre os candidatos, os países integrantes do Brics escolheram alguns de acordo com sua relevância para cada um dos países. Olhemos para os seis países convidados. Teremos mais um latino-americano e mais dois países africanos. Agora, o bloco, na falta de um, terá três países árabes. Fecha a lista o Irã.
A entrada saudita é, principalmente, por convite chinês, enquanto os EAU intensificaram sua parceria com a Índia nos últimos anos. O Egito e o Irã são essenciais para os projetos de infraestrutura chineses, na chamada “Nova Rota da Seda”, especialmente pelo canal de Suez. O Egito também possui boas relações com a Rússia. Por outro lado, a Etiópia “equilibra” a presença egípcia, já que os dois países possuem várias divergências.
Finalmente, a Argentina têm como “padrinhos” de adesão o Brasil e a China. No caso brasileiro, pela parceria no Mercosul e, no caso chinês, pelo aprofundamento das relações econômicas entre Argentina e China. Recentemente, a China chegou a financiar parte da dívida da Argentina com o FMI. Dos seis convidados, cinco possuem profundas relações econômicas com a China.
O sexto país seria a Arábia Saudita, cujos laços com a China estão se aprofundando. Lembremos, por exemplo, que o país árabe foi o primeiro destino de Xi Jinping pós-pandemia, com acordos em áreas como energia, finanças e armamentos. Também recentemente, Irã e China assinaram um acordo de cooperação econômica válido por um quarto de século, como vimos aqui em nosso espaço.
China
O principal ganhador dessa expansão, nesse momento, é a China, a principal proponente da expansão do grupo. Um dos propósitos do grupo é um pleito histórico e apropriado, a necessidade de reforma da governança global. A ordem internacional que existe atualmente é um fruto do pós-Segunda Guerra Mundial, quando a realidade era muito diferente. O Conselho de Segurança da ONU, o FMI, o Banco Mundial, são todos desse período.
Quando a ONU foi fundada, ela teve cinquenta países assinando sua carta. Hoje, são quase duzentos membros. Países como a Índia e os EAU não eram independentes, enquanto outros, como o Egito, não eram totalmente soberanos. O poderio da França e do Reino Unido eram muito maiores do que são hoje, enquanto a China e a Arábia Saudita não tinham uma fração do poder econômico e político de hoje.
Nesse sentido, a China ganha aliados em seu pleito pela reforma da governança econômica global, como no citado FMI e também na OMC, criada em 1995. Outra potencial vantagem chinesa é o fato de que o Brics pretende aprofundar o comércio em moedas nacionais, talvez até mesmo com uma moeda de conversibilidade comum. China, Rússia, Índia e EAU já fazem comércio entre si com suas moedas nacionais.
Se pensarmos que o Brics vai reunir, agora, seis dos nove maiores produtores de petróleo do mundo, isso será uma vantagem enorme. O grupo também potencialmente consolida o papel chinês como mediador. Uma eventual conclusão do processo de adesão marcará de vez a détente entre Irã e sauditas, mediada pela China, e também poderá servir para similar mediação na disputa entre Egito e Etiópia.
Expansão do bloco
Outro ganhador é o próprio bloco. Expande sua presença geográfica e cultural, além de expandir também a complexidade econômica. Agora, o Brics terá duas economias com forte componente financeiro, Arábia Saudita e EAU, não apenas commodities ou energia. Por outro lado, o Brics precisa encarar logo a necessidade de maior institucionalização do bloco, já que a articulação, por vezes, segue passos lentos, mais uma coligação solta.
Também saem ganhando, por vários motivos, os potenciais novos integrantes. Os sauditas diminuem sua dependência dos EUA em temas internacionais. A Etiópia, sede da União Africana, ganha destaque, uma das economias que mais cresceu no mundo antes da mais recente guerra civil. O Egito, em profunda crise econômica, ganha potenciais parceiros. Principalmente, o Irã buscará alternativas perante o isolamento pelos EUA.
No “meio termo”, sem perder, nem ganhar muito, estão quatro países. A Argentina, cuja adesão é incerta. Os EAU, convidados pela Índia para equilibrar a presença saudita e cuja política exterior já buscava um mundo multilateral. A Rússia também é pouco afetada, já que a expansão do Brics apenas consolida algumas de suas pautas, como a proximidade com o Irã, a cooperação energética com sauditas e a venda de cereais para o Egito.
Outro país que sai sem grandes ganhos ou perdas desse processo é a África do Sul. Em crise política interna e em crise econômica, o país anfitrião da cúpula não teve voz muito ativa. Finalmente, os dois principais perdedores nesse processo: Brasil e Índia. Ambos os países não queriam uma expansão do Brics, mas um modelo de “países parceiros”, integrantes em um nível abaixo.
Brasil e Índia saem perdendo
Isso está presente na declaração final da cúpula. Enquanto o item 91 fala em “membros plenos”, o item 92 fala em “desenvolverem ainda mais o modelo de país parceiro do Brics e uma lista de potenciais países parceiros e um relatório até à próxima cúpula.”. Com a expansão, a influência do Brasil e da Índia fica diluída. Antes, cada um era 20% do grupo, agora serão menos de 10%.
Nenhum dos dois, entretanto, quis bancar o papel de “porteiro” que barra novos integrantes, tampouco teriam como conter a pressão chinesa completamente. A China, inclusive, desejava uma expansão ainda maior, com países como Argélia, Bangladesh e Bolívia. Todos esses países estavam presentes na cúpula, que reuniu outros treze chefes de governo ou de Estado além dos cinco países-membros.
Em compensação, Índia e Brasil conseguiram a mais firme declaração de apoio chinês à reforma do Conselho de Segurança da ONU, pauta que reúne Brasil e Índia desde os anos 1990. Ainda assim, trata-se de uma concessão já no curto prazo em troca de uma promessa para o longo prazo. No caso indiano, agravado pelo fato de que Índia e China possuem uma disputa fronteiriça em vigor.
Outra compensação foi a inclusão do tema de segurança alimentar na declaração final, tema importantíssimo para o Brasil, grande produtor agrícola, e para a Índia, maior população do mundo. Finalmente, além de ganhadores e perdedores, a cúpula termina com duas grandes incógnitas para o futuro. A primeira é: e agora, para onde vai o grupo? Como mencionado, o Brics precisa aprofundar sua institucionalização.
Agora o grupo será mais heterogêneo. Isso poderá ser um motivo para sucesso ou a origem de um enorme problema de falta de coesão. Terá sido essa expansão um “passo maior que a perna”? A segunda incógnita é como essa expansão será recebida nos EUA e na União Europeia. É comum ver a interpretação de que o Brics é um grupo “anti-Ocidente”, o que é frequentemente confundido com a defesa do multilateralismo.
O rótulo de “anti-Ocidente” acaba sendo um termo vago e uma válvula de escape para sair de um debate mais profundo. Por exemplo, dos seis países convidados, dois possuem bases militares dos EUA em seu território. A Arábia Saudita está em processo de diversificar suas parcerias, enquanto a Índia é historicamente hábil em equilibrar interesses. Os que acham que a Índia fará uma opção abrupta entre EUA e China se enganam.
Sequer é possível falar de alguma coesão ideológica no grupo ou nos novos convidados. Na verdade, a principal pergunta que precisa ser feita em Washington, Paris ou Bruxelas é o que explica o fato de quase quarenta países terem se interessado em entrar nesse grupo supostamente “anti-Ocidente”. Onde os EUA ou a União Europeia falharam e afastaram esses países? Enquanto isso, a China venceu esse round.
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