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eua alemanha militar
Soldado dos EUA na área de treinamento militar em Grafenwoehr, sul da Alemanha| Foto: Christof STACHE/AFP

O presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou a retirada de um terço dos militares de seu país atualmente baseados na Alemanha. O anúncio foi acompanhado de uma declaração, por assim dizer, pouco diplomática, em que Trump justifica a decisão por questões orçamentárias, afirmando que a Alemanha não contribuiu o suficiente em seu orçamento de defesa. A questão, entretanto, é bem mais profunda do que “contas não pagas”, e envolve uma série de outros aspectos tão, ou mais, importantes.

Para justificar a retirada dos doze mil militares, Trump disse: "Eles estão lá para proteger a Europa. Eles estão lá para proteger a Alemanha, certo? E a Alemanha deve pagar por isso. A Alemanha não está pagando. Não queremos ser mais otários. Assim, estamos reduzindo nossas forças porque eles não estão pagando suas contas. É bastante simples, eles são delinquentes.". Importante notar que “delinquente”, nesse contexto, possui o sentido de caloteiro, aproveitador, não “criminoso” como no sentido mais habitual em português.

Dinheiro para defesa

Primeiro, as questões orçamentárias. Na cúpula da Otan de 2014, após a anexação da Crimeia pela Rússia, foi acordada uma meta para os países da aliança: investirem 2% de seu PIB na área de Defesa. Desse montante, 20% deveria ser investido em equipamento. No relatório da cúpula de 2019 consta que as médias estão em 1,67% e 21,5%, respectivamente. Em relação ao PIB, a média é obviamente puxada pelos EUA, com 3,4% de seu PIB, o maior orçamento militar do mundo.

Na Europa, proporcionalmente, o país líder é a Bulgária, com 3,2% do seu PIB em defesa. E a Alemanha? Está em 17º lugar dos gastos, com 1,36% de seu PIB. Ou seja, Trump não está errado em dizer que a Alemanha investe menos do que a meta acordada, mas não é apenas isso que explica a decisão. Primeiro que, dos doze mil militares, 5.600 não voltarão para casa, serão redistribuídos para bases sediadas em outros três aliados da Otan: Bélgica, Itália e Romênia.

Dos três, apenas a Romênia cumpre a meta. Proporcionalmente, a Itália é um dos países que menos investe em Defesa, com apenas 1,22% de seu orçamento. A contradição de retirar forças de um aliado que “não paga” para colocar em outro que também “não paga” possui explicações. Primeiro, no cenário europeu, redistribuir as forças dos EUA para regiões atualmente mais delicadas, como o mar Negro e o mar Mediterrâneo, onde conflitos estão ocorrendo, como na Líbia, ou congelados, como no Cáucaso.

Segundo, ainda no cenário europeu, fortalecer o comando da Otan em Bruxelas. Não estamos mais na Guerra Fria, quando uma guerra convencional mobilizando milhões nas fronteiras entre a Otan e o antigo Pacto de Varsóvia é uma preocupação. É mais inteligente formar uma força de ação rápida em Bruxelas do que espalhar os militares dos EUA por todo o continente europeu. Finalmente, em um cenário global, é mais um passo na progressiva migração do foco militar dos EUA, da Europa para o Extremo Oriente.

A análise também não acaba aqui, não são decisões puramente militares. Existem dois aspectos geopolíticos importantes. Primeiro, a Alemanha é a maior economia da Europa e possui uma robusta indústria de defesa. Fabrica e exporta desde pistolas até mísseis e submarinos. Suas empresas, junto com companhias francesas, formam a espinha dorsal de diversas iniciativas europeias de defesa. Além de tudo isso, a Alemanha é uma das consideradas potências nucleares dormentes.

Isso significa que o país domina todos os ciclos tecnológicos nucleares para uso militar, embora não os use. Em 1964, mais de cinquenta anos atrás, a Alemanha lançou ao mar o primeiro navio civil com reator nuclear, o cargueiro Otto Hahn. Para observadores mais atentos e analistas da época, o navio era claramente uma demonstração de tecnologia militar. Um cargueiro apenas pouco maior que um destróier e de desenho veloz e ágil, pouco proveitoso, economicamente, como cargueiro.

Dinheiro para o gás 

A questão é que, até hoje, a Alemanha não pode investir demais em questões de defesa e é proibida do uso militar de tecnologia nuclear. As forças armadas do país não podem passar de 370 mil integrantes; hoje, 183 mil na ativa. A vizinha França, com população menor, possui mais de 200 mil militares. Principalmente, as limitações possuem um impacto político muito grande, tornando pouco atraentes projetos de defesa e o aumento de gastos militares no país, somado aos traumas culturais herdados das duas guerras mundiais.

Por isso que a Alemanha é uma grande exportadora de armas mas enfrenta problemas domésticos com manutenção de equipamentos. Isso afeta a integração militar europeia. Como mencionado aqui nesse espaço, pela primeira vez a União Europeia estabeleceu um orçamento comum de defesa. A crescente distensão entre o governo Trump e a parte europeia da Otan pode forçar a mão europeia, com aumento de gastos e novos projetos, para uma “independência” do auxílio dos EUA.

Outro aspecto geopolítico é a relação energética entre Alemanha e a Rússia, algo que desagrada Trump por contrariar os interesses dos EUA na política e na economia. Dois anos atrás, ele chegou a dizer que a Alemanha era “prisioneira” da Rússia. Hoje, os alemães importam da Rússia 35% de seu gás natural, 40% do petróleo e 30% de seu carvão mineral. A proximidade geográfica, com dutos e o mar Báltico, faz com que o custo seja economicamente vantajoso para a Alemanha.

Como a racional da Otan ainda é de proteção contra avanços russos, aspecto reforçado pela questão da Crimeia, isso gera uma contradição explorada por Trump, que comentou o comércio russo-germânico dizendo “temos que falar sobre os bilhões e bilhões de dólares que estão sendo pagos ao país do qual supostamente estamos lhes protegendo". Isso não anula, nem esconde, que o descontentamento do governo Trump pela construção do gasoduto Nord Stream 2 é por questões econômicas.

Os EUA estão produzindo e exportando cada vez mais gás natural, derivado da exploração do xisto, e esperavam ter maior penetração no mercado europeu. Isso é prejudicado, entretanto, pela baixa competitividade de seus preços, já que o produto precisa ser transportado pelo Atlântico. Inicialmente, o governo impôs sanções ao gasoduto, por envolver empresas russas, mas isso não dobrou os alemães, já que, economicamente, o gasoduto faz muito mais sentido.

A retirada de tropas dos EUA da Alemanha acaba sendo, então, uma carta em um baralho bem maior, que envolve o tabuleiro europeu, o asiático, questões energéticas e comerciais. Como consequência, a Alemanha pode sim se comprometer a mais gastos em defesa, mas dificilmente vai mudar de postura em relação ao gasoduto, já em estágio avançado. No fim das contas, a cartada pode não ter muito valor perante as relações EUA-Alemanha, causando mais constrangimento e distância do que promovendo alguma mudança mais significativa e construtiva.

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