No último domingo, dia 4 de setembro, a população do Chile rejeitou a proposta de carta elaborada pela constituinte do país. Com 61,6% dos votos, o “rechazo” teve uma vitória esmagadora, surpreendendo até os mais otimistas opositores da carta e contrariando as pesquisas feitas nos últimos meses, que apontavam vitória do rechazo, mas com margem menor. Algumas perguntas são inevitáveis e, principalmente, o Chile mergulha num período de intenso debate político sobre seu futuro próximo.
A pergunta mais óbvia e clara é: o que explica esse resultado? Afinal, em 2020, a população chilena, com 78% dos votos, escolheu redigir uma nova constituição, rechaçando a carta herdada da ditadura de Augusto Pinochet. Outorgada em 1980, ela sofre de diversas discussões sobre seu vício de origem, como já discutimos aqui em nosso espaço. Também marca o período mais violento e autoritário da História chilena. Ou seja, a maioria dos eleitores deseja se livrar dessa herança.
Além de ter escolhido por uma nova constituição, foram os eleitores chilenos que elegeram os integrantes da constituinte. Como terceiro capítulo eleitoral recente, em dezembro de 2021, 55% dos eleitores escolheram Gabriel Boric para presidir o país, o político mais de esquerda eleito no Chile desde Salvador Allende em 1970, que foi deposto pelo golpe militar de Pinochet, em 1973. Ou seja, depois de três aparentes vitórias eleitorais da esquerda, ela foi derrotada, justo talvez no voto mais importante.
Diversidade e lítio
O Chile é um país grande, territorialmente. Como o Brasil é um país continental, não costumamos enxergar outros países como grandes, salvo Rússia, EUA e um ou outro mais. Essa vastidão territorial se traduz em riqueza e diversidade, na geografia, no clima e também na demografia. Diferentes setores da população terão diferentes interesses e perspectivas. E isso contribui para uma das explicações sobre o resultado do referendo. Ao contrário dos outros pleitos, o voto no referendo constitucional foi obrigatório.
Enquanto pouco mais de 8 milhões de chilenos participaram do segundo turno das eleições presidenciais de 2021, mais de 13 milhões votaram no referendo. Cinco milhões de novos eleitores. Não se trata de dizer que um ou outro é mais ou menos democrático. São as regras de cada pleito. O voto facultativo, inclusive, por vezes é classificado como mais democrático do que o compulsório. O fato é, mais pessoas votaram, mais vozes foram ouvidas, vozes que talvez não tivessem se pronunciado antes.
Esse eleitorado “silencioso” vai representar setores chilenos que consideravam a constituição apresentada como desequilibrada na representação social. Os temas mais debatidos no Chile não foram os econômicos. Por exemplo, a constituição previa a participação do Estado na exploração de lítio, mineral essencial para os próximos anos, já que é utilizado para baterias elétricas. Carros elétricos, celulares, computadores etc precisam de lítio.
Coincidência ou não, o editorial de um dos maiores jornais dos EUA, de propriedade de um magnata do comércio eletrônico que está diversificando suas operações para outros setores, como a exploração espacial, falava da importância do referendo chileno. E abria o texto sobre essa importância falando do lítio, já que parte considerável das reservas do minério está na América Latina, incluindo a Amazônia. Não foi o lítio, entretanto, que mais pautou o debate sobre a constituição chilena, longe disso.
Símbolos pátrios
Foram questões como o aborto de gestação e a representatividade dos povos indígenas. Esse segundo ponto, inclusive, foi muito delicado em vários episódios, como o debate sobre um status plurinacional ao Chile e o uso dos símbolos pátrios, como a bandeira. Temas que, para esse cidadão chileno que não costuma participar dos pleitos, mas se viu obrigado a fazê-lo, não são pertinentes, não lhe interessam ou ele é frontalmente contra. Nesse sentido, existe o problema de qualquer voto como esse, em que é “tudo ou nada”.
Um eleitor pode até concordar com algumas pautas, mas não se identifica com outras e, então, votou contra. Esses dois aspectos, a ampliação do eleitorado e a difusão de pautas explicam em boa parte o resultado do referendo. “Boa parte”, pois, se falamos que o Chile é um país diverso em todos os sentidos, não existe uma resposta monolítica para esse resultado. Quem falar assim estaria enganando o leitor. Mais que direita versus esquerda, esse referendo foi entre os que defendem uma mudança total e os que alegam que existem coisas no Chile atual que valem a pena serem preservadas.
Esse será o raciocínio que vai guiar a política chilena agora. Ao contrário do que algumas pessoas podem achar, a constituição de 1980 não foi “salva”. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, por exemplo, chegou a postar em uma rede social que “Pinochet reviveu”. Além do comentário inapropriado sobre um assunto interno de um país próximo, ele está errado. Em 2020, a população chilena já decidiu que enterraria a constituição de 1980. Resta saber como, mas aquele resultado continua válido. Não foi rejeitada uma nova constituição, mas esse projeto de nova constituição.
Nova constituição
Após o resultado, o presidente Gabriel Boric disse que o Chile é uma sociedade democrática, que o povo falou claramente e que vai dialogar com os líderes partidários do congresso. A maioria dos partidos, inclusive, defende uma nova constituição e se comprometeu ao processo que foi iniciado com os protestos populares em 2019 e pela iniciativa do então presidente Sebastian Piñera, de direita. Existem diversas possibilidades de como seguir adiante, incluindo maior participação do Congresso.
O que muda, entretanto, é que agora é a direita que é a “dona da bola”. O mais importante aqui não é apenas a derrota da nova constituição, mas o tamanho dessa derrota, que provavelmente vai se traduzir em acordos políticos que atendam os pedidos dos partidos de direita em questões sociais, como aborto de gestação, representação indígena e a estrutura do Estado. Muito se fala de um período de “incerteza” nos próximos meses, mas não seria diferente mesmo com a aprovação da nova constituição, já que ela não vigoraria num passe de mágica.
Principalmente, qualquer análise e conclusão sobre o referendo constituinte chileno não pode esquecer de uma coisa. É assim que democracias representativas funcionam. Goste-se ou não da carta proposta, ou de algumas partes dela, ela foi rejeitada pela maioria da população. Ponto final. Essas pessoas precisam ser ouvidas, especialmente em seus anseios de uma sociedade com melhor qualidade de vida para seus cidadãos. Gabriel Boric respondeu sabendo disso e agora ele terá a difícil tarefa de conduzir conversas com o Congresso, para chegar em uma nova carta que represente os chilenos e, finalmente, enterre o legado do regime assassino que governou o país.
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