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O ano de 2020 entra no mês de setembro com três votações para ficarmos de olho. O mês de agosto já costuma demorar para passar, no ano da pandemia do novo coronavírus, pareceu ainda mais. E também por causa da pandemia, três referendos previstos para mais cedo no ano foram adiados para setembro e, aparentemente, todas as votações estão de pé. Em maior ou menor grau, todos estes referendos podem trazer algum elemento para debate aqui no Brasil, já que uma das benesses de acompanhar o que acontece ao redor do mundo é discutir como essas experiências poderiam servir nossa realidade.
Nos dias 20 e 21 de setembro os italianos irão às urnas votar para os cargos de prefeitos, conselheiros municipais, alguns cargos regionais e também para preencher dois cargos no senado nacional que estão vacantes. Aproveitando a organização das eleições locais, os cidadãos também votam se aprovam uma reforma constitucional que já passou pelo Parlamento. A reforma foi proposta inicialmente em 2016, pelo então premiê Matteo Renzi, do Partido Democrático (PD), de centro-esquerda. Após ser rejeitada em referendo, Renzi renunciou e novas eleições foram organizadas.
Corte de assentos
Tomou posse um novo governo, formado pelo Movimento 5 Estrelas (M5S), de centro-direita, e a Lega Nord, de direita, atualmente chamada apenas Lega. O novo governo ruiu, Matteo Salvini e sua Lega foram expulsos da coalizão e o M5S chamou o PD para formar um governo de frente ampla. Nesse novo governo, a proposta foi retomada, com algumas modificações. Ela altera três pontos da constituição italiana. Primeiro, diminuiu de 630 para 400 o nûmero de deputados na câmara baixa. Desses, oito seriam eleitos pelos cidadãos italianos que residem em outros países. Atualmente, esse número é doze.
Os cidadãos italianos que residem na América do Sul elegem quatro deputados no formato presente. Na eleição de 2018, dois deles eram brasileiros de São Paulo. Esse número provavelmente cairia para três. Pela reforma, a representação seria calculada de maneira distrital e proporcional, ou seja, divide-se o tamanho da população pelo último censo por 392 e o número final será a medida de cada distrito eleitoral, que escolherá uma pessoa para a Câmara. Algo parecido com o formato atual nos EUA. A segunda alteração é no tamanho do Senado, de 315 para 200 assentos.
Desses, quatro seriam eleitos no estrangeiro, contra os seis atuais. Cada região, algo análogo aos estados brasileiros no sistema unitário italiano, teria ao menos três senadores, com os assentos distribuídos de maneira proporcional à população de cada região. A terceira modificação é a de limitar a cinco o número de senadores vitalícios apontados pelo presidente. Além desses eventualmente nomeados, ex-presidentes também são senadores vitalícios após deixarem o cargo da chefia de Estado.
Os defensores dessas reformas argumentam que ela permitirá uma diminuição de custos governamentais e menos “privilégios” aos ocupantes dos cargos, em um debate que é partilhado entre Brasil e Itália, e não por acidente, já que ambos bebem na mesma fonte, a cultura política e legal romana. No caso brasileiro, com Portugal como intermediário, mas esse é outro debate. As estimativas falam de 300 a 500 milhões de euros economizados em cada legislatura de cinco anos. Já os críticos apontam que a diminuição do Parlamento levaria à uma diminuição da representação popular na política.
Custos e representatividade
Por exemplo, com a diminuição de cadeiras e a consequente necessidade de mais votos para a conquista de um assento, partidos pequenos e partidos regionais ficariam ameaçados, ou seriam “fagocitados” por partidos maiores. Sobre os senadores vitalícios o debate também é curioso. A tendência dessa coluna é rejeitar qualquer representação política que seja de maneira vitalícia, quanto mais hereditária. E claro que a noção de se criar um senador vitalício é abrir as portas para o estabelecimento de uma casta política que não tenha compromisso algum com a situação e é custeada pelos cidadãos.
Por outro lado, na maneira com que o expediente costuma ser usado na Itália, permite a representação política de figuras e setores que, de outra maneira, dificilmente teriam essa representação. Dos atuais seis senadores vitalícios italianos, apenas dois são políticos de carreira. Temos uma médica pesquisadora, um arquiteto, um físico laureado com o Nobel e a ativista Liliana Segre, sobrevivente de Auschwitz e que dedicou as últimas três décadas de sua vida em impedir que a Itália esqueça o Holocausto e as perseguições.
Todos esses foram nomeados pelo seus serviços em suas áreas, não deixando de ser um uso interessante do que talvez não seja exatamente uma boa ideia. A outra discussão italiana em meio essa proposta de reforma é como melhor representar a população no Parlamento, evitando distorções. Esse é o mesmo mote do referendo que ocorrerá no dia 26 de setembro nas ilhas Malvinas, na terminologia oficial do governo brasileiro, ou nas ilhas Falklands, na terminologia dos habitantes.
Os cidadãos britânicos das ilhas, chamados de kelpers, possuem um parlamento local, com oito representantes eleitos. Desses, cinco são eleitos na cidade de Port Stanley e outros três são eleitos por todo o restante da população das ilhas. Parece absurdo uma cidade eleger dois terços do parlamento, mas a distorção é outra, já que 87% da população das ilhas vive em Port Stanley. Ou seja, a capital deveria poder eleger ainda mais representantes. O referendo, então, propõe transformar as Malvinas em um único distrito eleitoral, sem a divisão que existe atualmente.
Brasil, ontem e hoje
E como tudo o que foi relatado aqui pode contribuir no debate político brasileiro? O sistema representativo nacional é uma colcha de retalhos, e meio mal costurada. A Câmara de Deputados brasileira possui um piso e um teto de representantes de um mesmo estado, oito e setenta, respectivamente. Isso quer dizer que Roraima, com seus cerca de 600 mil habitantes, ao eleger oito deputados, cada um deles representa, de grosso modo, 75 mil pessoas. Já São Paulo, com 45 milhões de habitantes, elege setenta deputados. Cada um deles representa, de grosso modo, 642 mil pessoas.
Isso é escrito com todo o respeito pelos compatriotas roraimenses e longe de qualquer discurso de superioridade pró-São Paulo, pró-sudeste, o que for. É a constatação de um profundo desequilíbrio na representação federalista brasileira, que gera mais problemas do que a primeira vista pode denunciar. No modelo federalista dos EUA, por exemplo, cada estado possui o mínimo de um deputado e não há teto. Isso quer dizer que o Alasca, com 710 mil habitantes, elege um deputado, enquanto a Califórnia, com 37 milhões de habitantes, elege 53 deputados.
É claro que pequenas distorções vão ocorrer, mas nada na casa de mais de oito vezes o número como no exemplo brasileiro. Fazendo um pequeno exercício de imaginação com a Câmara brasileira usando o parâmetro dos EUA, a maioria dos estados está super-representada, enquanto as populações de Santa Catarina, São Paulo, Rio Grande do Norte, Ceará, Pará e Amazonas estão sub-representadas. Pode-se argumentar que não seria salutar um estado ter uma representação muito maior do que a dos outros, já que São Paulo teria, nesse exercício, 111 deputados.
É para isso que existe o sistema bicameral, com a câmara baixa representando a população e a câmara alta representando as entidades da federação. Se a maior parte da população está localizada em um estado, oras, ela deve ser representada mesmo assim. Já no Senado dos EUA, cada estado possui dois assentos, independente do tamanho da população. Alasca e Califórnia estão em pé de igualdade ali. Se os italianos vão cortar parte do seu senado, que é calculado de forma sui-generis, o Brasil talvez pudesse fazer o mesmo.
Atualmente cada estado possui três cadeiras no Senado. Originalmente eram duas, já que muito do sistema político da república brasileira foi inspirado em modelos adotados nos EUA e na Argentina. A terceira cadeira senatorial e a distorção na Câmara possuem a mesma origem, o infame Pacotão de Abril de 1977, quando Ernesto Geisel fechou o Congresso, que dava falso verniz de debate público, e, na caneta, mudou a composição do legislativo brasileiro. A justificativa foi a de que, como o “poder econômico” estaria centrado no sul e sudeste, seria justo dar maior representação política ao norte e ao centro-oeste.
No fundo, a manobra foi feita para diminuir a influência do MDB de então, aumentando a representatividade de regiões pró-ARENA e colocando um terço do Senado como apontados pelo presidente, os infames “senadores biônicos”. O sistema distorcido foi mantido pelas pessoas eleitas por essa mesma distorção na década de 1980 e está aí até hoje. A versão política do lema “onde a ARENA vai mal, mais um time no nacional”. Seria o caso de mudar a formação do Congresso brasileiro, tal como está sendo proposto na Itália? Diminuir? Aumentar? Ou apenas tornar sua representatividade mais justa perante a população?
Finalmente, no dia 27 de setembro, os suíços vão votar em cinco temas. Mudanças na lei de imigração, na isenção fiscal de dependentes, na lei sobre caça esportiva, na compra de novos aviões de caça para a força aérea e na lei sobre licença paternidade. Nesse caso a discussão é bem mais breve e sucinta. A Suíça consulta sua população diversas vezes ao ano e referendos, com efeitos de lei, podem ser invocados até pela iniciativa popular, via a coleta de assinaturas de eleitores. Claro, um país muito menor do que o Brasil, em território e em população, mas, já que o tema é representatividade democrática, não é possível ignorar esse exemplo no final de setembro.