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O governo de Emmanuel Macron apelou a um controverso mecanismo constitucional para aprovar seu projeto de reforma previdenciária na França. Depois de dois meses de intensos protestos contra o projeto, mais o fato de ter minoria na câmara baixa do parlamento, Macron e sua primeira-ministra, Elisabeth Borne, decidiram atropelar o processo democrático e forçar a aprovação da reforma. Como resultado, a reforma terá sua legitimidade questionada e deu mais combustível aos protestos.
Pela reforma, a idade mínima de aposentadoria será de 64 anos de idade, ao contrário dos atuais 62, e o tempo de contribuição necessário será de 43 anos, a partir de 2027. Trabalhadores insalubres, como policiais, precisarão ter ao menos 59 anos de idade, e alguns regimes especiais serão eliminados. Principalmente, os de trabalhadores do transporte público, setor que foi um dos principais articuladores dos protestos contra o projeto de reforma.
Outras mudanças também serão feitas, por exemplo, em relação ao regime previdenciário de trabalhadoras mulheres. Segundo o governo Macron, a reforma vai economizar cerca de 20 bilhões de euros ao ano. Hoje, a França gasta cerca de 14% do seu PIB em seu sistema previdenciário, a maior proporção da zona do euro. Tendo esses números expostos, é razoável para muitas pessoas que a reforma seja necessária e seus termos seriam aceitáveis.
Rejeição nas ruas e no Parlamento
A questão não depende apenas dos números. Além de setores afetados diretamente estarem envolvidos nos protestos, a França realizou uma reforma previdenciária menos de 15 anos atrás, em 2010, durante o governo Nicolas Sarkozy. A repetição de cenário colabora muito para o repúdio público da proposta. Outro elemento importante para entender essa rejeição é a reputação de Macron como intransigente em negociações com o Parlamento.
Ironicamente, ele deu total razão aos seus críticos ao invocar o mecanismo constitucional para contornar o Legislativo. No último sábado, a proposta foi aprovada no Senado por 195 votos a favor e 112 contra. Embora o partido de Macron tenha apenas 23 cadeiras na casa, o Senado é dominado pelos Republicanos, o partido conservador tradicional da França, que favorece a reforma previdenciária. Claro que o partido aproveitou a ocasião para conseguir concessões da primeira-ministra, mas, em geral, o partido já defendia a pauta.
Alguns leitores podem se surpreender com o fato de os Republicanos terem tamanha força, já que, nas últimas eleições presidenciais, os dois partidos tradicionais do país, o Republicanos e o Socialista, tiveram resultados fraquíssimos. Como explicamos aqui em 2021, entretanto, os dois partidos tradicionais continuam muito fortes nas eleições regionais e nas eleições legislativas. Com a reforma aprovada no Senado, restava a Assembleia Nacional, onde ela não tinha chance de ser aprovada.
Das 577 cadeiras da câmara baixa, apenas 250 estão com o governo, menos da metade. Além disso, a segunda e a terceira maiores bancadas estão com partidos abertamente contra Macron e suas propostas, a Reunião Nacional, de Marine Le Pen, e a França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon. Um partido da direita nacionalista e um da esquerda radical. Prevendo o fracasso, Elisabeth Borne invocou o artigo 49.3 da Constituição francesa pela 11ª vez.
Histórico francês
O artigo é baseado na premissa do primado do Executivo e é uma herança direta da influência de Charles de Gaulle na elaboração da Constituição, em 1958. Após a Segunda Guerra Mundial, a França foi refundada sob o signo da Quarta República, com poderes pouco centralizados. Isso está alinhado com o contexto do período pós-guerra, com forte repúdio ao fascismo e à possibilidade de que um governo pudesse usar os próprios mecanismos institucionais para centralizar e tomar o poder.
A questão é que, para muitas pessoas, isso resultou em uma França politicamente disfuncional, com alta rotatividade de governos com pouca autoridade. Como consequência, a França foi novamente refundada, agora como a Quinta República, em 1958. Sob influência de De Gaulle, a nova Constituição buscava reparar os aspectos vistos como fraquezas do regime anterior. Daí a elaboração de um artigo que permite que o Executivo aprove uma lei sem a necessidade de concórdia do Parlamento.
O artigo pode ser usado sem limites em questões orçamentárias, as dez ocasiões anteriores em que Elisabeth Borne invocou o artigo. Quando se trata de projeto de lei, entretanto, ele pode ser utilizado apenas uma vez. Mais que isso, pode ser derrubado. Tanto a Frente Nacional quanto a França Insubmissa já anunciaram a apresentação de uma moção de censura. Caso a moção tenha maioria absoluta dos votos, a lei é rejeitada e o gabinete, na prática, sofre um voto de desconfiança.
Legitimidade e protestos
No caso atual, provavelmente isso resultaria na queda de Borne e seu gabinete. É possível até que Macron possa dissolver a Assembleia e convocar eleições antecipadas. Como isso nunca aconteceu em um cenário de tamanha importância, é difícil fazer previsões no contexto atual. O fato é que mesmo deputados e eleitores que defendiam a reforma criticaram a medida do governo, classificada como autoritária, com razão. Os protestos que estavam perdendo força agora vão se tornar mais extremos.
Na própria quinta-feira (16), dia da votação, a sessão parlamentar foi brevemente suspensa após o anúncio do uso do artigo 49.3. A Praça da Concórdia, ironicamente, tornou-se cenário de batalha campal e destruição por manifestantes. Nesta sexta-feira (17), Paris amanheceu com universidades e vias bloqueadas, além de convocação de bloqueio de refinarias de combustíveis, e ocorreram mais manifestações ao longo do dia em todo o país. No final de semana, os protestos pela França prometem reunir mais de 1 milhão de pessoas nas ruas.
Piora o cenário o fato da greve dos garis parisienses, com toneladas de lixo não recolhido pelas ruas. No melhor dos cenários para Macron, a moção de censura não consegue a maioria dos votos e os protestos perdem força com o passar do tempo. Mesmo nesse cenário ótimo, entretanto, Macron conseguiu que a legitimidade da reforma como um todo seja questionada, além de garantir a articulação dos dois principais partidos que se opõem ao seu governo. Um tiro no pé monumental do governo francês.