Primeiro-ministro japonês Shinzo Abe anunciou sua renúncia| Foto: Behrouz MEHRI/AFP
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Abe Shinzo, primeiro-ministro do Japão, anunciou horas atrás que vai renunciar ao cargo por questões de saúde. Ele sofre de uma inflamação intestinal crônica e não consegue mais conciliar o cargo com os cuidados de sua saúde e as dores que sente. Abe ainda permanecerá no cargo interinamente, enquanto seu sucessor é escolhido dentro do partido Democrata Liberal, o maior partido conservador japonês. O sucessor cumprirá o restante do mandato, até setembro de 2021. De qualquer maneira, é possível dizer que uma era se encerra na História recente do Japão.

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O colunista é longe de ser um expert em política partidária japonesa e não há como fazer aqui alguma previsão honesta sobre sua sucessão. Também não seria polido duvidar dos motivos de Abe e do estado de sua saúde, já que ele teria ido ao hospital duas vezes nos últimos dez dias. Em uma das visitas, passou horas razoáveis fazendo exames. Ainda assim, é necessário dizer que sua popularidade estava bastante baixa, afetada pela resposta ao novo coronavírus, por ligações políticas possivelmente indevidas com um procurador, o debate sobre a Olimpíada e um possível esquema de evasão fiscal.

Segundo a rede pública NHK, o índice de aprovação de Abe estava na casa apenas dos 35%, muito longe do prestígio que ele já teve e do poder político necessário para realizar as mudanças constitucionais que ele deseja. Ainda assim, a renúncia de Abe é o fim de uma era para o Japão, o último premiê do reinado de Akihito e o primeiro de Naruhito. Claro, isso é apenas simbólico, mas Abe é também o primeiro-ministro que mais tempo ficou no cargo, por um ano em sua primeira passagem, de setembro de 2006 a setembro de 2007, e desde dezembro de 2012.

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Revisionismo histórico

Nesse período, venceu três eleições, um feito num país marcado por alta rotatividade no poder. Nos últimos quarenta anos, apenas três premiês passaram do terceiro ano no poder. Teoricamente, o mandato é de quatro anos, marca atingida poucas vezes no pós-guerra.

Recordes de lado, é na política externa japonesa e na identidade do país que Abe deixou suas principais marcas. Outros políticos que o antecederam tentaram desafiar o pensamento pós-guerra, com uma constituição pacifista e uma postura de, discretamente, reconhecer os abusos japoneses cometidos na Segunda Guerra Mundial.

Abe desafiou isso dentro e fora de seu país. Ele é integrante da Nippon Kaigi, uma das várias organizações de direita nacionalista e revisionista da imagem do Japão na guerra. Negam as atrocidades japonesas, como o Estupro de Nanking, as marchas da morte e os experimentos humanos realizados pela Unidade 731, para citar os exemplos mais conhecidos. Negam a culpa dos poucos criminosos de guerra japoneses que enfrentaram a justiça do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente. Mantém o discurso nacionalista do período.

O Japão na década de 1920 até 1945 compartilhava muitas características com o fascismo. Classificar o Nacionalismo Showa de fascismo não está exatamente errado, mas há certa imprecisão do termo, já que existem características próprias da cultura japonesa, enquanto o fascismo é, desde o próprio nome de raízes romanas, um fenômeno das sociedades ocidentais. Crises econômicas afetaram o Japão no período e o aparato de Estado estava marcado pelos ressentimentos com a conclusão insatisfatória da Primeira Guerra Mundial.

Para os militares japoneses, o Japão não conquistou uma posição justa na nova ordem internacional, nem teve todas suas pretensões territoriais atendidas. Principalmente, o Japão propôs na conferência de paz de Paris (1919) que os países integrantes colocassem na resolução da guerra a condenação do racismo. Algo que soa quase óbvio, mas que foi vetado pelo Reino Unido, por pressão da África do Sul e da Austrália, ambos com políticas oficialmente racistas no período, o Apartheid e a White Australia.

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Isso acabou, paradoxalmente, fortalecendo o racismo japonês, a ideia de que, se os europeus não queriam ver os asiáticos como iguais, então eles provariam que seriam superiores, nem que fosse pelas armas. Claro, uma vulgarização de duas linhas. Havia também a defesa de tradicionalismos e a romantização do passado, a defesa do militarismo expansionista, dentre outros componentes ideológicos. Para os japoneses do período, a guerra do Japão era, na verdade, “defensiva”, para se defender das potências europeias e dos EUA, e a presença desses na Ásia.

Armamentismo

Não é exagero dizer que Abe compartilha dessa visão, embora a expresse de maneira menos radical, tentando preservar um certo equilíbrio nas relações do país. Ainda assim, seu governo passou por repetidos dissabores com a Coreia do Sul e com a China, ao diminuir as atrocidades japonesas e com integrantes do governo visitando o polêmico templo de Yasukuni, um símbolo nacionalista japonês e do xintoísmo de Estado. Em 2013, o próprio Abe visitou o templo como primeiro-ministro, o que ele já havia feito antes na sua carreira política, despertando críticas dos países citados.

Não é de espantar, então, que a maioria dos sul-coreanos respondeu uma pesquisa afirmando que apoiariam a Coreia do Norte numa guerra contra o Japão. A questão das “mulheres de conforto”, eufemismo para escravização sexual e estupro de dezenas de mulheres, é outra polêmica do governo Abe. Tudo isso se traduziu na emissão de novos livros escolares japoneses, cujas páginas diminuíam as responsabilidades japonesas, o exato contrário do que ocorre na Alemanha.

No campo internacional, Abe trabalhou para modificar a constituição japonesa e rearmar o país. Ele não conseguiu retirar o artigo pacifista da constituição. No país, as forças armadas são eufemisticamente chamadas de “forças de autodefesa” e possuem atuação limitada. Ainda assim, foi em seu governo que o Japão passou pela maior expansão de seu orçamento militar desde a guerra, o sexto maior orçamento militar do mundo. Foram oito anos de aumento no orçamento de defesa.

Novos aviões, como os novos caças F-35, o desenvolvimento de um novo rifle padrão para a infantaria, a criação de um cibercomando e, principalmente, um robusto rearmamento naval. Algo natural, sendo o país um arquipélago, mas que gerou alarme nos vizinhos e discussões legais internas, já que o país, legalmente, não pode operar navios porta-aviões, uma arma de projeção de força. Para contornar isso, o país construiu dois novos “porta helicópteros”. Considerando que seus novos aviões são projetados para decolagem em pistas curtas e pousam na vertical, os novos navios são, na prática, porta-aviões.

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Na perspectiva internacional, a questão sobre sua sucessão é dividida em duas partes. A sucessão imediata é interina, não se deve esperar grandes mudanças, para qualquer lado que for. Ano que vem, entretanto, o provável é que a eleição seja bastante influenciada sobre a visão dos japoneses em relação ao passado imperialista de seu país e qual o papel dele na ordem internacional. Depois de quase oito anos da visão de Abe, ela pode continuar e ganhar ainda mais força, ou dar lugar aos críticos dessa visão. Certamente as ações da China e das repúblicas coreanas vão influenciar esse debate pelo ano vindouro.