Na última quarta-feira, as seleções de futebol da Espanha e do Kosovo se enfrentaram pelas eliminatórias para a Copa do Mundo, e a partida causou certo desconforto diplomático. Nenhuma relação com o fato da seleção ibérica ter vencido facilmente a partida, por 3x1, no Estádio Olímpico de La Cartuja, em Sevilha, mas pelo tratamento dispensado aos visitantes, que representam um Estado não reconhecido pelos anfitriões, por razões que cabem ser explicadas.
A independência do Kosovo foi proclamada de maneira unilateral em 2008. Isso quer dizer que a separação não foi acompanhada de um acordo com a Sérvia, e nada foi acordado até hoje. O novo Estado contava com apoio dos EUA e do Reino Unido, mas o pleito sérvio é apoiado pela Rússia e pela China, ambas potências com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Para a coluna ser mais precisa, o principal apoio para Belgrado é o da Rússia, numa aliança que remonta ao final do século XIX.
A Rússia, inclusive, usou o precedente criado por Kosovo para seu benefício, com um certo tom de sarcasmo. Quando da ocupação da península da Crimeia, em 2014, os russos organizaram um referendo em que a maioria dos votantes optou pela independência, via a República da Crimeia. E essa entidade, então, solicitou a entrada na Federação Russa, sem o consentimento da Ucrânia. Após a condenação internacional, Moscou alegou paralelos com Kosovo e apontou uma suposta hipocrisia ocidental.
Argumentos da História
No caso kosovar, os habitantes locais, na maioria de origem albanesa, votaram pela independência, via referendo, sem consultas com a Sérvia. Belgrado alega que o direito internacional está do seu lado, que Kosovo é um território historicamente sérvio e que não existem “kosovares”, mas imigrantes albaneses que se tornaram a maioria da população. Já os kosovares e os nacionalistas albaneses alegam que eles que são a população nativa da região, parte da ideologia da Grande Albânia.
Note-se que essa argumentação não contradiz a argumentação sérvia, apenas busca uma primazia histórica pelo território. “Quem chegou primeiro”, em termos mais simples. Ou seja, mesmo dentre os kosovares não existe um “nacionalismo” próprio, mas uma ligação muito forte com a Albânia. A bandeira do maior partido kosovar é justamente a bandeira albanesa. Essa pauta tornou-se mundialmente conhecida em outro evento futebolístico, a Copa do Mundo de 2018, disputada na Rússia.
No campeonato, a Suíça venceu a Sérvia, e os dois jogadores suíços que marcaram os gols são de origem kosovar, de famílias refugiadas da guerra. Ao celebrarem, usaram as mãos para representar a águia de duas cabeças albanesa, em provocação aos sérvios, gerando grande repercussão. Ao mesmo tempo, fortaleceram o argumento sérvio, de que não existe “o Kosovo” como um Estado-nacional ou uma nação própria, mas sim albaneses que residem no território.
Política e esporte
De volta ao episódio atual, quando o sorteio das chaves das eliminatórias europeias para a Copa do Mundo foi realizado, a polêmica já havia se instalado. E a federação de futebol kosovar foi incisiva: somente jogaria contra a Espanha se fosse “respeitada”. A federação espanhola, ao mesmo tempo, disse que seguiria todas as formalidades, mas que não iria além do necessário e não violaria leis espanholas. Por exemplo, sobre bandeiras nacionais no mesmo patamar.
O motivo da falta de reconhecimento espanhol é simples. A Espanha teme que um reconhecimento seu do Kosovo vire um perigoso precedente que saia pela culatra. Por exemplo, com outros países reconhecendo eventuais separatismos e independências da Catalunha ou do País Basco. Então, Madri segue uma política estrita de aguardar por um acordo entre Kosovo e a Sérvia. Ao ponto de o tom oficial ser de, basicamente, fingir que não existe Kosovo.
A federação espanhola de futebol se referiu ao país como "território de Kosovo", mesmo termo usado pelos jornalistas do país na transmissão e cobertura da partida. Os mesmos profissionais foram orientados a não usarem os termos “país” ou “Kosovo” como sinônimo de país, sem o qualificador “território” antes. Na transmissão local da partida, a RTVE, televisão estatal espanhola, usou letras maiúsculas para a sigla de Espanha, enquanto a sigla para Kosovo era exibida em minúsculas.
Importante lembrar algo já comentado aqui nesse espaço, que o Brasil também não reconhece Kosovo como um Estado, alegando a integridade territorial sérvia e sinalizando que a formalização de relações virá apenas depois de um acordo entre Pristina e Belgrado. A política brasileira nesse caso se baseia em dois pilares públicos e um não tão público assim. Os públicos são o do pacifismo e o do Direito internacional, para fomentar o diálogo em busca de uma solução negociada e legal.
O motivo não tão público assim é também evitar criar um precedente para separatismos brasileiros, incluindo aí o de povos indígenas, e o assunto é um “segredo aberto” desde a década de 1970, tanto no Itamaraty quanto nos meios militares. Negado em público mas foco de preocupação nos bastidores. Ao contrário da Espanha, entretanto, o Brasil não finge que o Kosovo não existe, e brasileiros podem visitar a região sem a necessidade de qualquer visto especial.
Dificilmente esse episódio de Sevilha vai “ficar barato” e o jogo da volta, em Pristina, está marcado para o dia oito de setembro. Caso, até lá, a pandemia já tenha aliviado a pressão na cidade, os espanhóis devem esperar uma recepção calorosa. Mesmo que não seja o caso, a federação de futebol kosovar deve realizar um espetáculo recheado de bandeiras e símbolos que não foram bem quistos na Espanha. Um lembrete de que existe um conflito congelado bem na Europa.
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