A invasão da Ucrânia pela Rússia não afeta apenas os soldados na linha de frente ou as pessoas que precisam fugir de suas casas. O impacto é global, na política e na economia. Claro, isso pode soar quase como um chavão nesse ponto dos acontecimentos, mas é, infelizmente, necessário reforçar sempre esse caráter ressonante da guerra. Da política internacional como um todo, na verdade, uma das razões da existência desse espaço. O cenário, entretanto, está se mostrando de mudanças mais profundas. Toma-se a guerra como um furacão, uma tempestade que uma hora passa. Isso é parcialmente verdade, mas alguns efeitos vão durar, com possíveis impactos de grande escala na ordem internacional.
No curto prazo alguns efeitos já são sentidos, alguns bastante óbvios. Trata-se de uma guerra envolvendo a Rússia, uma potência nuclear, o que por si só causa temores e incertezas. Não obstante, a Rússia é o terceiro país maior produtor de petróleo, segundo maior produtor, e maior exportador de gás natural, terceiro maior produtor, e maior exportador, de trigo, além de ser o maior produtor de vários outros cereais. Até o início da guerra, tratava-se da décima maior economia do mundo em valores nominais, sexta em poder de paridade de compra. Do outro lado do conflito está a Ucrânia, o “celeiro da Europa”, um dos maiores produtores e exportadores de commodities agrícolas.
O conflito traz consigo um aumento no preço dos combustíveis, da energia e de diversos grãos e alimentos. E, em 2022, não faz diferença se você vive em um país que importa alimentos ou é uma potência agrícola como o Brasil. O que determina o preço é o mercado internacional, em dólar. E o preço dos combustíveis não afeta apenas o cidadão que possui um automóvel, mas afeta todos os preços de todos os produtos, em efeito cascata. Produtos, insumos, trabalhadores, tudo precisa ser transportado e, novamente, o preço é em dólar. Tudo isso pode parecer básico e primário para alguns dos leitores, mas um esclarecimento, ou lembrança, necessário para outros.
O uso do dólar
A citação dupla ao dólar não foi um acidente. Especificamente, claro, o dólar dos EUA, a principal moeda para preços, comércio, reservas e poupanças do mundo. A força do dólar retroalimenta a influência internacional dos EUA. A ascensão do país norte-americano como potência, na virada do século XIX para o XX, caminha junto com o início da adoção do dólar como moeda internacional. Após a Grande Guerra, que devastou economias europeias, o uso e adoção do dólar cresceu ainda mais, especialmente para o financiamento de dívidas derivadas da guerra ou da reconstrução.
Essa crescente importância, inclusive, fará parte das teorias de conspiração e de ódio, nacional e racial, que alimentaram o nazismo. A situação da Alemanha seria “culpa” dos “banqueiros judeus dos EUA” e coisas do tipo. Com a Segunda Guerra Mundial, conflito em que o principal papel dos EUA foi como potência industrial e financeira, veio também a Conferência de Bretton Woods, em 1944, que consagra o dólar como moeda de reserva internacional. Outro capítulo importante dessa trajetória é o dos Choques do Petróleo, quando o preço do “ouro negro” sobe vertiginosamente após a manipulação do preço pelos países produtores, principalmente países árabes. Preço esse, claro, negociado em dólar.
Essa recapitulação histórica serve para ilustrar um ponto importante e por vezes negligenciado. O dólar é uma moeda fiduciária, como a maioria das moedas contemporâneas. Não é lastreado em um metal, não possui valor intrínseco e seu câmbio é flutuante. Principalmente, uma moeda fiduciária é um elo de confiança, utilizada pois as pessoas e empresas esperam que ela seja garantia do valor recebido em troca de produtos ou serviços. Quanto mais ampla uma rede comercial, mais ampla e verificável precisa ser a confiança dessa moeda. Em outras palavras, uma nota de cem dólares é, em essência, apenas um pedaço de papel, mas que gera a confiança de que o valor atribuído à ela será honrado nas trocas econômicas.
Em essência, no cenário internacional, o dólar é utilizado pois ele é confiável. Ao mesmo tempo, muito de sua confiança, ou seja, do valor atribuído a ele, provém da amplitude do seu uso. E isso é parte importante do poder e da influência dos EUA. Enquanto o dólar é a moeda nacional de um país, mais de 60% da moeda em circulação está no exterior, fora do país que o emite. Se o uso internacional do dólar diminuir, seu valor também vai cair. Domesticamente, isso significa maior inflação nos EUA. Internacionalmente, significa um menor poder de influência, especialmente econômica, pelo país. Mais do que uma potência militar, os EUA são uma potência econômica e centro financeiro mundial.
Sanções e desdolarização
É usando de tamanho poder que Washington conseguiu, em questão de dias, impedir que o Banco Central da Rússia acesse mais de 400 bilhões de dólares das reservas russas, de um total de mais de 630 bilhões. A retirada de parte dos bancos comerciais russos do sistema internacional de pagamentos, o SWIFT, mais as sanções contra grandes empresas, resultaram no congelamento quase instantâneo de cerca de um trilhão de dólares de ativos russos em circulação. O governo Biden não precisou mudar a rota de sequer um porta-aviões para causar um dano gigantesco aos russos, que não podem acessar seu próprio dinheiro, por ele ser em outra moeda que não a sua. Ao mesmo tempo, esse poder centrado em Washington mostra para outros países que suas economias são vulneráveis.
Claro que é importante explicitar que a Rússia invadiu a Ucrânia em uma guerra de agressão. As vítimas são as pessoas comuns ucranianas. Numa lógica de Estados, entretanto, onde existem interesses, pontos fortes e pontos fracos, a Rússia se mostrou exposta em uma guerra econômica, em contraste com o poderio econômico dos EUA. A Rússia questiona a legalidade, no Direito Internacional, das sanções unilaterais, como adotadas por Washington, afirmando que sanções podem ser impostas apenas no âmbito do Conselho de Segurança da ONU. Mesmo com a discussão legal ou com acusações de “abuso de poder econômico” contra os EUA, os outros países percebem a situação e sabem que não possuem poderio econômico, ou clima político, para criticar as sanções. Ainda assim, se perguntam: e se isso acontecer conosco um dia?
Na última semana, duas notícias nessa seara não são mera coincidência com os eventos na Ucrânia. Segundo o Wall Street Journal, o reino da Arábia Saudita está negociando com a China para realizarem o comércio de petróleo em renminbi, a moeda chinesa, popularmente chamada de yuan. A negociação faz parte das tratativas para a construção de uma gigantesca refinaria na China, fruto de parceria com a estatal saudita Aramco. A outra notícia é que a Índia pretende utilizar o renminbi como moeda de referência para o comércio com a Rússia, que seria realizado com rúpias e rublos. China e Rússia, inclusive, já realizam comércio em suas moedas nacionais.
A diversificação da cesta de moedas, por vezes chamada de “desdolarização”, utilizadas pelo comércio internacional por pesos-pesados econômicos como os citados é um pesadelo para Washington. E um possível efeito colateral das rápidas e amplas sanções dos EUA contra a Rússia. Para sauditas e indianos, diversificar sua cesta de moedas significa estarem menos vulneráveis a sanções. Hoje é a guerra na Ucrânia, amanhã pode ser a guerra no Iêmen, ou na Caxemira, podem pensar. No curto prazo os efeitos serão mínimos, mas, no médio e no longo prazo, não podem ser negligenciados, enfraquecendo a economia dos EUA e também uma das maiores armas do país, o dólar.
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