Nossos quase-vizinhos sul-americanos Chile e Equador passam por situações muito similares. Em ambos os países temos um presidente que está na lista de pessoas mais ricas de seu país. Também em ambos os países o presidente está envolvido nas revelações do caso dos Pandora Papers. E os dois governos decretaram alguma forma de estado de exceção na última semana. E tudo isso pode tanto ser uma coincidência visando o melhor interesse das duas nações quanto uma estratégia de cortina de fumaça.
Primeiro, o Chile e Sebastián Piñera. A investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, conhecido pela sigla em inglês ICIJ, aponta que a família Piñera Morel seria a maior acionista de um projeto de mineração que foi vendido para Carlos Alberto Délano em uma negociação que parcialmente ocorreu nas Ilhas Virgens Britânicas. Délano é amigo de longa data do presidente Piñera.
No dia três de outubro, o gabinete do presidente negou qualquer participação no negócio, emitindo uma nota oficial em que declara que "é reiterado que o presidente da República não participa da administração de nenhuma empresa há mais de doze anos, antes de assumir o seu primeiro mandato". No caso, março de 2010. A nota também afirma que os fatos já foram investigados e que nenhuma irregularidade foi encontrada e que todos os impostos devidos teriam sido pagos.
Ainda assim, o fato do contrato da venda do projeto de mineração ter incluído uma cláusula que determinava que não poderiam ocorrer “mudanças regulatórias” foi visto como um possível conflito de interesses. Em um cenário hipotético, Piñera poderia barrar alguma mudança regulatória proposta no Legislativo ou por algum ministro pensando não no que seria melhor para o país, mas em preservar a sua bolada de 152 milhões de dólares caso a venda fosse cancelada pela cláusula.
Estado de exceção no Chile
Essa foi uma das razões para que, no dia oito de outubro, a procuradoria do Chile tenha anunciado a abertura formal de uma investigação contra o presidente. A procuradoria alegou que “o contrato em inglês nas Ilhas Virgens Britânicas não havia sido incorporado nas investigações anteriores, de 2017, criando um “fato novo”. Foi a deixa para a oposição anunciar que começaria os procedimentos de impeachment do presidente. Antes disso, entretanto, Piñera decretou um estado de exceção no sul do país.
O decreto é do dia doze de outubro e o estado de exceção e militarização se aplica às províncias de Biobío e Arauco, na região de Biobío, e de Malleco e Cautín, na região de Araucanía. “Região” é o homólogo chileno ao estado no Brasil. Ele é válido por quinze dias e pode ser prorrogado. Com o texto, as províncias ficam sob um comandante de defesa nacional, designado pelo presidente. Algo similar à intervenção federal que ocorreu no estado brasileiro do Rio de Janeiro.
Supostamente, o decreto é devido aos protestos e choques entre indígenas mapuche, cerca de 1,7 milhão de pessoas, pouco menos que 10% da população nacional, e fazendeiros e empresas. No centro desses protestos está a posse de terras, especialmente as exploradas pela indústria madeireira. As lideranças mapuche alegam que, como a constituição pinochetista do Chile não reconhece as populações indígenas, aspectos legais do reconhecimento de propriedade de terras originalmente ocupadas foram prejudicadas.
O aumento da violência também teria ligação com um aumento do crime organizado, com o governo usando até a retórica de “atos terroristas”. Tanto indígenas quanto madeireiros formaram grupos armados para a defesa de seus interesses. Como consequência do decreto, as Forças Armadas poderão “fornecer apoio logístico, tecnológico, de comunicações, vigilância, patrulhamento e transporte a todos os procedimentos policiais que se desenvolvem nas províncias declaradas em Estado de Exceção”.
No caso do Chile, inclusive, é interessante lembrar que os Carabineros, a polícia militar nacional, são um ramo das forças armadas. No dia seguinte ao decreto, treze de outubro, os deputados oposicionistas chilenos começaram os trabalhos para abrir um eventual processo de impeachment do presidente, agora com o noticiário tomado pela discussão sobre o decreto de estado de exceção, se ele seria necessário, adequado e demais discussões legais.
Lasso no Equador
Mais ao norte, no Equador, foi no dia dez de outubro, um domingo, que o Congresso decidiu abrir investigação contra o presidente Guillermo Lasso. A questão jurídica ali é se Lasso tinha dinheiro em offshores quando candidato à presidência, o que poderia causar até a cassação de sua chapa. A investigação foi aprovada por ampla maioria, com 105 votos dos 137 possíveis. O presidente afirmou que há anos teve "negócios legítimos em outros países", mas que abriu mão deles para concorrer nas eleições.
Pela lei equatoriana, candidatos aos cargos executivos não podem ter patrimônio no exterior. Segundo a nota do presidente, seu patrimônio é "fruto do trabalho de uma vida inteira" no Banco Guayaquil. Uma semana depois do anúncio do Congresso, no dia 18, Lasso decretou estado de exceção devido a “grave comoção interna”, classificou o narcotráfico como o “principal inimigo” do Equador e a mobilização das forças armadas em nove, das 24, províncias equatorianas.
Coincidência ou não, dessas nove províncias, Lasso foi perdedor em sete delas nas últimas eleições. Um dos fatores que supostamente legitimaria o decreto de Lasso foi o conflito entre gangues criminosas rivais na Penitenciaría del Litoral, que deixou 118 presos mortos. A briga é parte da divisão do grupo Los Choneros, o mais poderoso do país, que controla o narcotráfico no Equador. Ou controlava. O Equador, especialmente pelo porto de Guayaquil, é importante rota para a droga produzida na Colômbia e no Peru, desde os anos 1980.
Do porto, a droga pode fluir para a América Central, para o México, para a costa da Califórnia ou cruzar o canal do Panamá, rumo à Europa. Um comércio muito lucrativo. Importante lembrar ao leitor que isso é distinto de ser um país tomado pelo tráfico ou pelo consumo de drogas. Pelo contrário. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, o Equador é um dos países que menos consome drogas ilegais no mundo. Cocaína é uma droga cara e, no topo da lista, estão EUA, Reino Unido e Austrália.
Ou seja, o Equador é uma rota de drogas, mas ela não fica ali, não está tão presente nas ruas, não há narcotraficantes controlando porções do país. Operações de inteligência seriam muito mais eficazes, e discretas, em desbaratar esse tipo de operação. E, mesmo que o massacre da prisão fosse mesmo um catalisador, ele ocorreu no dia 28 de setembro. Foram quase duas semanas entre o conflito e a abertura das investigações pelos Pandora Papers, mais uma semana até o decreto.
Para completar o pacote, Lasso classificou como “golpistas” os grupos que planejavam protestos contra seu governo e se recusou a comparecer, no último dia 20, perante a Comissão de Garantias Constitucionais do Congresso, para responder perguntas sobre seus investimentos. Em carta, o presidente disse que ele que receberia os congressistas, na sede do executivo, em uma inversão de papéis. Os protestos, inclusive, ficam dificultados pela sua medida excepcional.
Cortinas de fumaça?
Piñera e Lasso não seriam os primeiros políticos da História que criam uma cortina de fumaça e uma distração para longe de suas próprias polêmicas. Ainda assim, as “coincidências” e as sequências cronológicas de eventos são curiosas, para dizer o mínimo. Os conflitos no sul do Chile duram anos e duas pessoas morreram no início de 2021, mas apenas agora o estado de exceção tornou-se politicamente atraente. Mesma coisa no Equador, com datas muito cômodas.
O que distingue a situação dos dois é o momento de cada governo. Piñera deixará a presidência do Chile em março e, provavelmente, deve se retirar da vida pública. O que importa seu impeachment, então? O país terá eleições daqui um mês. O desgaste da imagem de Piñera interessa aos oposicionistas como forma de desgastar os candidatos da direita no pleito vindouro, como Sebastián Sichel, sucessor direto do partido de Piñera, ou o pinochetista José Antonio Kast.
Já Lasso tomou posse cinco meses atrás, em meio a uma pandemia em que o Equador é um dos países do mundo com pior relação entre número de casos e número de mortes, além do impacto econômico. Sua aprovação continua alta, na casa dos 65%, mas caiu dez pontos em apenas um mês. No Congresso, das 137 cadeiras, seu partido possui apenas doze, mais dezoito da base aliada. Cerca de um terço da casa se declara “neutra” e a oposição declarada possui 65 assentos, quase metade.
Ou seja, Lasso governa, desde o início, com as costas contra a parede, sem grandes apoios, em um cenário previsto aqui no nosso espaço. E a oposição vai explorar essa falta de base parlamentar. Cabem aos chefes do executivo se defender da maneira que acharem mais apropriada e com os meios ao seu dispor. Especificamente, a caneta e o comando das forças armadas. Se essas defesas vão funcionar, não sabemos, mas esperemos apenas que essas cortinas de fumaça não causem justamente mais violência.
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