O Congresso Nacional do Povo da China autorizou nesse dia 28 de maio uma nova lei de segurança nacional. O propósito do novo documento será “impedir a subversão, o terrorismo e o secessionismo, bem como a interferência estrangeira”. A medida não está valendo, ainda será formalizada nos próximos meses, e possui um alvo claro e direto: a Região Administrativa Especial de Hong Kong e as manifestações no território.
Uma breve recapitulação sobre o status de Hong Kong. A ilha do “Porto Perfumado” foi cedida pelo império Qing aos britânicos após a Primeira Guerra do Ópio, 1842. Após a Segunda Guerra do Ópio e as invasões estrangeiras na China, em 1898, a colônia britânica foi expandida e foi assinado um acordo que estipulava a cessão por 99 anos de Hong Kong e seu entorno. Ou seja, até 1997.
Antes da transferência foi negociado outro acordo, em 1984, que criou o mecanismo de “um país, dois sistemas”, estipulando as bases para a devolução de Hong Kong e dos territórios. Por um prazo de cinquenta anos, a China é obrigada a reconhecer a autonomia legislativa e judiciária de Hong Kong. Finalmente, tivemos a cerimônia realizada em 1997, quando a coroa britânica devolveu a soberania de Hong Kong aos chineses.
O governo britânico foi representado pelo príncipe Charles, e foi chamada pelo próprio herdeiro do trono como o dia que marca o fim do antigo império britânico. Como lembrado por Donald Trump no mais recente discurso na Assembleia Geral da ONU, o acordo feito com o Reino Unido é vinculante e foi depositado nas Nações Unidas; junto com isso veio o pedido de que Pequim “honre o acordo”.
A nova proposta
O que significa essa recapitulação? Que Pequim se comprometeu formalmente à reconhecer, até 2047, a autonomia interna de Hong Kong. Essa é a gênese dos mais recentes acontecimentos nos territórios, abordados na imprensa e também nesse espaço. O caso mais explícito foi o da lei que permitiria a extradição de criminosos para a China continental, enfrentada com enormes protestos que forçaram o governo a recuar.
Hong Kong possui partidos políticos próprios, eleições locais, judiciário local, parlamento local, enfim, é outro sistema político. Em temas externos, como defesa e soberania territorial, os territórios fazem parte da China. Breve esclarecimento de preciosismo: o uso do termo “territórios” se dá pelo fato da região administrativa de Hong Kong não ser apenas a ilha homônima, mas também seu entorno.
O que a nova lei implica, então? O principal ponto dela é que permitirá, “quando necessário”, o estabelecimento de operações das “agências nacionais de segurança” em Hong Kong. Na prática, abre a possibilidade de passar por cima da polícia de Hong Kong, que é civil e independente da jurisdição de Pequim. Quem define quando seria necessário? Pouco importa, na verdade.
Se for o governo de Pequim, será feita sua vontade. Se for o governo regional de Hong Kong, também será feita a vontade de Pequim, seja com a atual Carrie Lam, seja com seu sucessor ou sucessora. E qual seria o foco dessas agências de segurança? “Quaisquer atos ou atividades” de “separatismo, subversão ou terrorismo”. Agora, o que seria um “ato de subversão”, já que “quaisquer” deles podem ser alvos do governo?
Subversão e crimes
Pode ser o que o outro quiser que seja. “Subversão” é um coringa usado em qualquer regime autoritário; e não, isso não é uma referência velada ao uso do termo na História recente brasileira, é uma referência explícita. Subverter significa de baixo para cima; um sargento recusar a ordem de um coronel, ou, quiçá, tentar dar uma ordem ao superior hierárquico. O problema está quando essa noção se aplica à toda a sociedade.
Essa perspectiva de que a autoridade vai de cima para baixo, exclusivamente e sem contestação, é característica de regimes autoritários. Novamente, praticamente qualquer ato pode ser, com a devida distorção legal, classificado como subversão. Um protesto contra um projeto de lei? Subversão. Até atrasar o pagamento de uma multa de trânsito pode ser chamado de subversão por desrespeitar a autoridade de trânsito.
É um termo coringa que abre pequenas e perigosas brechas para um governo prender ativistas ou quaisquer pessoas “indesejadas” por motivos banais. O projeto também promete punir “separatismo”, algo considerado inaceitável na maioria dos Estados, mas que necessita de formalização. O que seria o separatismo, nesse caso? Declarar, de sabre em riste, a “independência ou morte” de Hong Kong?
Também seria crime apenas empunhar a antiga bandeira colonial, com a Union Jack britânica, como vista nos últimos protestos? A lei também fala em criminalizar o desrespeito ao hino nacional, já que, em partidas de futebol realizadas antes da pandemia do novo coronavírus, o hino chinês era vaiado em Hong Kong. Vaiar o hino nacional pode ser um ato civicamente repreensível e considerado ofensivo por muitos? Sim.
Também deve ser um direito de protesto, uma forma de desagravo a um governo, oras. Nos protestos também foi vista a bandeira dos EUA. Isso seria “atividade de forças estrangeiras”? A atividade de ONGs e de associações estrangeiras, poderiam ser classificadas dessa maneira? E uma empresa multinacional? Importante notar que, na retórica de Pequim, Hong Kong continuaria com sua autonomia.
O diplomata Xie Feng, representante do Ministério de Relações Exteriores chinês em Hong Kong, respondeu jornalistas dizendo que, por exemplo, a liberdade de imprensa no território continuaria, desde que ela não fosse usada como “pretexto” para atacar a segurança nacional. É uma declaração dúbia, pra dizer o mínimo. E essa será a argumentação de Pequim: a autonomia está intacta, é uma nova lei nacional.
Tudo por enquanto é muito vago, muito abrangente, do jeito que o diabo gosta, permitindo interpretações legais ao sabor dos ventos. O que também possibilita outra abordagem de Pequim, de verificar a temperatura global e regional sobre sua nova proposta e como ela seria recebida. Em Hong Kong, como esperado, mais protestos, mais repressão, mais prisões e mais embates entre parlamentares.
Tabuleiro internacional
No campo internacional, duas demonstrações são interessantes de ficar de olho. A primeira é do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, que disse "nenhuma pessoa razoável pode afirmar hoje que Hong Kong mantém um alto grau de autonomia da China, dados os fatos locais". Existe uma “pegadinha” nessa declaração. Por lei, a relação entre EUA e Hong Kong é regida de forma contínua desde pré-1997.
Ou seja, se o governo dos EUA alegar que Hong Kong não possui mais autonomia e que essa continuidade deve ser rompida, então as empresas do território estarão sujeitas às tarifas e limitações de Washington para toda a China. Isso poderia causar um choque econômico gigantesco no território, um grande hub portuário e comercial, além de centro financeiro de enorme valor de mercado.
Curiosamente, isso não é de todo indesejado por Pequim, que argumenta que a liberdade financeira de Hong Kong é utilizada pela oposição e pelo crime organizado, lavando dinheiro do tráfico de drogas e de outros crimes. O problema está na possibilidade de fugas de capitais, com Hong Kong deixando de ser esse centro financeiro. A outra demonstração internacional veio de forma conjunta, de Reino Unido, Canadá e Austrália.
Os três países possuem fortes laços comerciais, financeiros e históricos com Hong Kong, todos fazendo parte do antigo império britânico, e expressaram preocupação com a nova lei. Primeiro, pois ela seria, na visão desses países, uma quebra do Tratado assinado em 1984, um ato ilegal que poderia provocar sanções desses países contra o governo de Pequim e um arranhar na imagem de Pequim.
Segundo, existem centenas de milhares de pessoas com dupla-cidadania entre esses países e Hong Kong. E Canadá e Austrália estão com suas doses recentes de controvérsias com a China, envolvendo prisões, pedidos de extradição, tarifas comerciais e declarações fortes. No Reino Unido, o secretário de Relações Exteriores, Dominic Raab, anunciou uma imediata extensão de vistos para detentores de passaportes de Hong Kong.
Esse é outro possível efeito das mudanças em Hong Kong, uma imigração não só de opositores políticos, mas de pessoas comuns, mudando-se para países que facilitem essas condições, como é o caso britânico. Seu antigo império colonial, lembre-se, é a origem do fato do país hoje ter grandes comunidades de indianos, paquistaneses, dentre outros. Eles são cidadãos britânicos.
Segundo a imprensa britânica, são ao menos 300 mil detentores de passaportes de Hong Kong emitidos entre 1987 e 2007; no auge, foram mais de três milhões, mas a maioria não renovou seus documentos. A maior parte dessas 300 mil pessoas é estimada de ser de alta escolaridade ou capacitação profissional, representando também uma possível perda de mão de obra qualificada, até mesmo um risco de fuga de cérebros.
Se essas repercussões farão a China voltar atrás? Improvável, mas servem para, novamente, testar a temperatura. O fato é que Pequim colocou suas cartas na mesa, incluindo o coringa de reprimir a “subversão”. Hong Kong é, acima de tudo, um símbolo histórico e cultural, do tempo em que a China era humilhada pelas potências. Essa simbologia talvez importe mais para Pequim do que a economia ou a política.
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