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Você provavelmente nunca ouviu falar de Svalbard. Trata-se de um pequeno arquipélago no Mar Ártico, bem ao norte, mais longe do Brasil que a Islândia. É o lugar, inclusive, onde está o povoado permanente mais ao norte do mundo. Cem anos atrás, no dia Nove de Fevereiro de 1920, foi assinado em Paris o tratado que leva o nome do arquipélago. O texto foi acordado por 14 países e hoje já são mais de quarenta signatários. Principalmente, criou uma situação única no arquipélago.
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Administrativamente, o arquipélago é parte da Noruega, o país mais próximo e um dos primeiros a explorar a região. A moeda é a coroa norueguesa e a polícia do país tem jurisdição ali; entretanto, o arquipélago é uma região “não incorporada”. A soberania norueguesa não é total. Primeiro, a região é desmilitarizada, com bases e a presença de militares proibida. O arquipélago possui um orçamento separado, e todo imposto cobrado ali deve ser unicamente o suficiente para manter a administração local.
Além disso, a Noruega possui severas obrigações em relação ao meio-ambiente de Svalbard. Isso resulta em enorme números de parques e reservas que cobrem mais de dois terços de toda a área do arquipélago. Finalmente, o mais curioso. O arquipélago é uma “zona franca não-discriminatória”. Isso quer dizer que qualquer cidadão e qualquer empresa de qualquer país que seja signatário do acordo pode residir ali e realizar qualquer tipo atividade econômica.
Isso inclui atividades comerciais ou industriais, virtualmente inexistentes, e também a mineração e a pesca, as principais atividades desenvolvidas ali. Tais explorações econômicas explicam o próprio tratado. Quando de sua descoberta, na virada do século XVI para o XVII, neerlandeses, escandinavos, ingleses, franceses e russos passaram a usar o arquipélago pelos próximos dois séculos para caça, pesca e como ponto de parada em expedições baleeiras.
Disputa e pacificismo
Ao final do século XIX a situação fica mais complexa. São descobertas as primeiras jazidas minerais e as novas tecnologias da Segunda Revolução Industrial permitem um maior fluxo de pessoas para o arquipélago que, até esse momento, não tinha dono – no período em que a corrida imperialista entre as potências europeias estava no auge. Talvez fosse um exagero temer uma eventual guerra entre as potências pela posse das ilhas, mas certamente poderia resultar em uma crise que afetasse a geopolítica daquele período.
Talvez o exemplo mais conhecido disso seja a conquista francesa da Tunísia, que motivou o governo italiano a procurar uma aliança com o Império Alemão, vendo agora a França como ameaça e rival. Soma-se o fato de que, em 1905, a Noruega torna-se um país totalmente independente, buscando uma política externa de neutralidade. O novo governo em Oslo queria resolver pacificamente a questão da posse das ilhas, sem “confusão” com as potências muito mais fortes.
A Primeira Guerra Mundial estourou em 1914 e adiou as conversas sobre o arquipélago, que foram resolvidas em 1920. O curioso mecanismo adotado buscou contemplar todos os principais envolvidos: a manutenção da presença russa, a reivindicação territorial norueguesa e a presença pesqueira anglo-francesa. Desde então, a situação permaneceu quase inalterada, salvo uma pendência sobre a zona econômica exclusiva com a descoberta de campos de gás natural nas águas da região.
O empecilho para uma maior presença permanente ou migração de pessoas interessadas em viver na zona franca é, claro, o clima da região, bastante inóspito em boa parte do ano. A distância do continente também faz com que o custo de vida ali seja alto, especialmente quando pensamos em bens de consumo; uma prosaica garrafa de cerveja custa cerca de 150 coroas norueguesas, algo como setenta reais. O clima também gera algumas curiosidades, como o fato de ser “proibido” morrer ali.
Cofres da humanidade
Ao mesmo tempo, o clima e a localização transformam Svalbard em um foco científico mundial. Um campus universitário especializado em biologia e botânica ártica; laboratórios e estações de pesquisa climática, meteorológica e oceanográfica; estações de rádio e de comunicação com satélites; e até lançamento de foguetes de pequeno porte para estudo do campo magnético terrestre, focados nos pólos. E também a existência de dois enormes cofres para preservar o legado da humanidade.
Um deles é o Svalbard Global Seed Vault (“Cofre Global de Sementes”), que armazena quase quinhentos milhões de sementes de centenas de milhares de espécies diferentes. O clima frio e o solo de permafrost permitem a conservação. Sua localização evita atividades tectônicas e resistiria a mais de cem metros de subida do nível do mar. Em outras palavras, essa biodiversidade resistiria a uma hecatombe. O mesmo se aplica ao Arquivo Mundial do Ártico, um repositório construído em uma antiga mina de carvão.
Cento e cinquenta metros debaixo da superfície, as condições por si garantem a preservação dos materiais ali guardados, em um formato de filme previsto para durar mais de quinhentos anos. Acervos inteiros de diversos países estão preservados ali, uma espécie de Biblioteca de Alexandria para arqueólogos e historiadores do futuro; ou para cenários de ficção científica, como um pós-apocalipse. Dentre alguns dos acervos ali preservados estão o da biblioteca do Vaticano, incluindo versões digitalizadas de obras centrais na História.
Outro acervo preservado é o do Arquivo Nacional do México, o que abrange também os códices pré-hispânicos. O Brasil também está preservado ali, com o acervo do Museu da Pessoa, com centenas de entrevistas e depoimentos, além de fotografias. Caso o leitor seja responsável por uma instituição, fique tranquilo que a sede do repositório é perto de Oslo mesmo. O desconhecido arquipélago de Svalbard é mais que uma história pitoresca na política internacional, é um local que pode ter enorme importância. Em alguns séculos.
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Conteúdo editado por: Isabella Mayer de Moura