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No último dia 19, sob o pretexto de "combater o terrorismo", a ditadura do Azerbaijão violou o acordo de cessar-fogo negociado em 2020 e iniciou uma operação militar contra os habitantes etnicamente armênios da região de Nagorno-Karabakh, a não-reconhecida república de Artsakh. Infelizmente, o uso da força na região era mera questão de tempo, com tensões elevadas nas últimas semanas. O futuro da região e, principalmente, da população que ali habita há gerações, é nebuloso.
O histórico conflito entre Armênia e Azerbaijão e a questão dos habitantes da região já foram diversas vezes abordadas aqui em nosso espaço de política internacional. A mais recente vez foi em abril de 2023, quando comentamos o bloqueio a que Nagorno-Karabakh era submetida. Em suma, trata-se de uma região de maioria armênia, dentro de território internacionalmente reconhecido como do Azerbaijão, que declarou autonomia logo após a dissolução da União Soviética.
Após a vitória do Azerbaijão na guerra de 2020, quando recuperou os territórios de outros sete distritos ocupados, era questão de tempo para a ditadura de Ilham Aliyev usar a força para tentar ocupar o território de Nagorno-Karabakh. O país é maior, mais populoso e mais rico do que a Armênia, além de contar com um aliado poderoso, a Turquia, unidos sob o slogan “Uma nação, dois Estados”, referência ao fato de ambos os povos serem túrquicos e muçulmanos.
Pretextos e motivos
Como mencionamos, a região estava sob bloqueio desde dezembro de 2022, com desabastecimento de itens básicos, como alimentos. A justificativa para a nova ofensiva militar dada pelo ministério da Defesa do Azerbaijão foi a de combater o terrorismo, alegando que dois civis azerbaijanos e quatro policiais teriam sido mortos por minas colocadas por armênios. Não podemos descartar a possibilidade de uma “bandeira falsa”, já que todas as tropas já estavam a postos.
O provável verdadeiro motivo da operação militar foi a eleição, no último dia nove, de Samvel Shahramanyan como Ministro de Estado de Artsakh, o "presidente local". A ditadura do Azerbaijão havia declarado que a eleição seria "considerada um passo extremamente provocativo. Uma violação tão clara da soberania e da integridade territorial do Azerbaijão não é de forma alguma aceitável.”. Depois de cerca de duzentos armênios mortos, incluindo quatro crianças, os armênios de Artsakh se renderam.
O acordo de cessar-fogo foi mediado no dia 20 pela Rússia, entre os representantes armênios da região de Nagorno-Karabakh e os da ditadura do Azerbaijão. A região será “desmilitarizada”, com a dissolução das forças armênias locais de Artsakh, chamadas de “grupos terroristas” pelo Azerbaijão e a remoção de “armamento pesado”, provável referência a armamentos do exército regular armênio. Outras duas reuniões foram realizadas no dia seguinte, dia da independência da Armênia.
Uma foi para, supostamente, coordenar a “reintegração” da região ao Azerbaijão, com os armênios locais exigindo garantias de segurança. Outra foi uma reunião extraordinária do Conselho de Segurança, que pouco avançou. Na prática, Artsakh se rendeu, por dois motivos. O primeiro motivo é o fato da república da Armênia, governada pelo premiê Nikol Pashinyan, ter afirmado que não iria se envolver. Pashinyan, mais de uma vez, reafirmou que NK é território do Azerbaijão, a posição internacional.
O segundo motivo da rendição foi o fato da comunidade internacional pouco ou nada ter se mobilizado. Apesar dos pedidos de “contenção”, as autoridades que entraram em contato com os atores envolvidos agiram pela desmobilização, como no caso do secretário de Estado Anthony Blinken. Na comunidade internacional se “destaca” a posição russa, cujas forças de paz teriam protegido os civis. Na prática, Putin deu as bênçãos para a operação “anti-terrorismo” do Azerbaijão.
Mesmo com a morte confirmada de cinco militares russos pelas forças do Azerbaijão, o governo russo determinou que o “Ocidente” fosse culpado pelo revés armênio, revelado pelo portal Medusa, veículo crítico a Putin. Desde que foi eleito em 2018, Pashinyan defendeu mais laços com o chamado Ocidente, Europa e EUA. Por conta disso, foi “jogado aos leões” pela Rússia, a quem acusa de terem traído a Armênia. Desdobramentos recentes também aumentaram a tensão entre os dois países.
Extradição e limpeza étnica
Por exemplo, a Armênia decidiu enviar ajuda humanitária aos ucranianos, o que motivou a convocação do embaixador armênio em Moscou pelo governo russo. No que concerne à população de Nagorno-Karabakh, a ditadura do Azerbaijão vai propor a “reintegração” com a adoção de nacionalidade azerbaijana e já falam “armênios azerbaijanos”. Existem duas “pegadinhas” nessas ofertas. Primeiro, o governo do Azerbaijão também exigiu a rendição e “extradição” de uma série de nomes como condição.
São lideranças armênias de Nagorno-Karabakh que o Azerbaijão acusa de terrorismo e outros crimes. Segundo, embora a ditadura Aliyev goste de vender a imagem de um país multiétnico, na prática o Azerbaijão é um Estado dominado por uma maioria de 96% de azerbaijanos étnicos. Existe uma minoria substancial de lezguianos, um povo nativo do Daguestão, mais ao norte, e outras minorias, como uma pequena comunidade judaica. Na Armênia, 98% da população é etnicamente armênia.
Na prática, por uma série de razões, é impossível armênios viverem no Azerbaijão e vice-versa. Caso célebre é do mestre enxadrista Kasparov, que nasceu em Baku, capital azerbaijana, mas é russo de família armênia, que teve que fugir da perseguição. Ou seja, a oferta da ditadura Aliyev pouco vale e, na prática, o que está ocorrendo é a limpeza étnica da região. Os armênios estão sendo “incentivados” a irem para a Armênia, abandonando as terras onde vivem há literalmente dois mil anos.
Milhares de armênios já se aglomeram em alguns pontos de saída da região, como no aeroporto de Stepanakert, controlado pelas forças russas. Detalhe importante é que limpeza étnica não é a mesma coisa que genocídio, mas ambos são crimes contra a humanidade. Os armênios que ficarem estarão sujeitos ao assédio e à violência. Já pipocam vídeos nas redes sociais e em aplicativos de mensagens mostrando soldados do Azerbaijão disparando contra veículos e residências.
O ódio aos armênios é incentivado pela ditadura do Azerbaijão e pelo nacionalismo pan-túrquico. Na guerra de 2020 ocorreram diversos episódios de decapitações e mutilações, muitos deles compartilhados pelos próprios soldados do Azerbaijão como “feitos de bravura” em aplicativos de mensagens. Tudo isso foi documentado e entregue para as autoridades da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. No fim das contas, a escolha para os habitantes é entre a limpeza étnica ou o massacre.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise