Tudo deve mudar para que tudo fique como está, escreveu Lampedusa. A frase é frequentemente aplicável na política internacional, especialmente em relação aos interesses geopolíticos das potências. Com o colapso do governo Ahmad al-Bashir no Sudão, terceiro maior país em extensão da África, é relevante olhar para os interesses possíveis na tentativa de compreender e analisar a situação, embora ainda no calor dos eventos.
Bashir já sofria pesada oposição popular por alguns anos; sua queda era uma possibilidade na lista de no quê ficar de olho na política internacional em 2019, aqui nessa coluna. Embora numa primeira vista possa ser desmerecido “apenas mais um ditador africano” que caiu, ou algo do tipo, sua queda é um evento que pode alterar alguns prospectos internacionais e relações entre diferentes Estados.
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Importância do Sudão
Se vamos discutir os interessados no Sudão, antes precisamos saber do que estamos falando. Primeiro, sua localização. Um país territorialmente grande que faz a “ponte” entre o mundo árabe (o país é da Liga Árabe) e a África sub-saariana. Banhado pelo Nilo, o país fica em posição intermediária entre o Egito, onde o rio desemboca, e os países onde o rio e seus afluentes nascem.
A partilha internacional do Nilo é tema de vital importância, já que ele é essencial para a agricultura dos países que ele banha, além de diversas hidrelétricas que geram grandes parcelas da energia dos países locais. O problema é que o rio é o mesmo para todos, o que gera disputas e tensões, como visto atualmente sobre a nova hidrelétrica etíope, a “Grande Renascença da Etiópia”.
Banhado também pelo Mar Vermelho, o Sudão conecta o interior da África, um dos rios mais importantes do mundo e os oceanos, com um enorme potencial de “hub” logístico e de fluxo de mercadorias. Segundo, o país possui recursos minerais e naturais valiosos, e prospectos de novas descobertas. Embora tenha “perdido” boa parte de seu petróleo com a independência do Sudão do Sul, as reservas sudanesas de petróleo e de ouro são significativas e bastante rentáveis.
Os principais compradores do óleo sudanês são os Emirados Árabes Unidos, que o compra cru para refiná-lo, e a China, principal investidora na infraestrutura sudanesa, como a construção do Grande Oleoduto do Nilo. Outro ponto é que o país une uma população grande com uma economia pobre; a junção desses elementos com os recursos naturais faz com que o Sudão seja um destino atrativo para investimentos e potencial mercado consumidor. No novo milênio, a economia sudanesa cresceu bem acima da média mundial.
O primeiro interesse de várias potências é a pessoa de Omar al-Bashir. Desde Março de 2009 ele é desejado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, devido a postura de seu governo e de suas forças militares em Darfur e na região sul do país, hoje independente. Um dos ingredientes do conflito era a luta religiosa, com milícias cristãs e milícias muçulmanas, apoiadas pelas maiores e mais fortes forças armadas sudanesas. No Sudão do Sul, o Islã é uma minoria, com católicos e praticantes de religiões tradicionais como maioria.
Bashir quebrou o questionável recorde de ser o primeiro presidente ainda no cargo indiciado no TPI. Desde então, a relação entre o Sudão e diversos países europeus azedou, inclusive com a antiga potência colonial britânica. Com os EUA, a relação já estava azeda. O golpe que trouxe Bashir ao poder, em 1989, foi movido por militares e por setores islamistas, descontentes com a tentativa de um regime democrático.
Bashir se voltou contra seus aliados de ocasião islamistas, que formaram milícias regionais, como as mencionadas, grupos antigoverno e braços locais de grupos internacionais, como a al-Qaeda. No início da década de 1990, o Sudão era o refúgio de Carlos Chacal e de um ainda pouco conhecido Osama Bin Laden. Em 1993, Washington declarou que o governo sudanês era patrocinador do terrorismo. Em 1997, o fim das relações.
No mesmo ano, o governo dos EUA retirou seu embaixador, atacou indústrias químicas dentro do país e iniciou uma política de sanções contra a economia sudanesa. A questão é que não existe vácuo de poder na política. O espaço deixado pelas sanções dos EUA foi um convite para investimentos chineses e russos, além das relações com outros países árabes.
Ao se olhar para a hidrelétrica de Merowe, inaugurada em 2009 e uma das maiores da África, a lista de investidores mostra chineses e árabes como os grandes financiadores. Falando das principais potências, hoje, Rússia e China são as principais parceiras do Sudão. Investimentos e exploração de ouro e de petróleo, compra de armas pelas forças sudanesas, presença de “consultores” militares russos e possíveis mercenários coletando inteligência e cooperando com as forças armadas sudanesas.
Questões regionais
No que concerne o terrorismo, além da preocupação dos EUA, grupos extremistas de terroristas nos vizinhos Chade e Líbia podem se aproveitar de uma crise sudanesa ou de um levante generalizado contra Bashir. Já nas relações com outros países da região, para equilibrar as relações com os países árabes, a Turquia buscou melhores relações com o Sudão.
Em 2017 a Turquia inaugurou sua base em Suakin, permitindo acesso ao Mar Vermelho, bastante próxima do Egito e dos sauditas. A posição do Sudão pode parecer contraditória, já que o país é da Liga Árabe e têm em seus vizinhos alguns dos seus principais parceiros econômicos. Buscar relações com a Turquia, entretanto, evita justamente que os sudaneses fiquem totalmente reféns dos vizinhos árabes.
As relações com o Egito não são boas, apesar de, oficialmente, não existirem tensões. Os vizinhos um dia formaram um condomínio, sob tutela britânica, mas hoje não são mais próximos. Em relação ao Nilo e suas águas, Sudão e Etiópia estão de um lado da mesa de negociação, Egito e Eritreia estão do outro; ao menos até pouco tempo atrás, antes da reaproximação entre etíopes e eritreus. Eritréia e Sudão não tiveram relações entre 1994 e 2005, e o governo eritreu interveio em conflitos na porção oriental do Sudão desde 2004, apoiando grupos rebeldes.
Quem ganha?
No calor do momento, é fácil pensar que, se Bashir não atendia aos interesses dos EUA nem aos do Egito, então, são os dois países mais beneficiados com sua queda, em detrimento de Turquia, Rússia e China. Sem dúvida é uma possibilidade, que a queda de Bashir beneficie Washington ou até mesmo que os EUA tenham participação em sua derrubada; articulação popular, suborno de comandantes militares, tudo isso é muito bem documentado, passa longe de teoria da conspiração ou juízo de valor.
Uma das questões mais importantes para o fim de uma ditadura é o que vai ser dos donos do poder daquele momento. Um acordo? Um exílio? A morte na mão da população? Idi Amin viveu até a velhice asilado na Arábia Saudita. Ceausescu e Mussolini foram mortos pela própria população que oprimiram. Franco morreu no cargo e orquestrou o pós da própria ditadura. Os militares sul-americanos fizeram aberturas com auto-anistia; na Bolívia, Banzer continuou na política e foi eleito.
O caso Bashir possui o agravante de que poucos países aceitariam o risco político de abrigá-lo, já que ele é desejado por denúncias de crimes contra humanidade. Uma denúncia ainda não confirmada disse que ele estava tentando fugir para a Síria, país que ele visitou recentemente, como parte de negociações com russos e árabes. Ele será entregue ao TPI? Vai receber abrigo em algum país que tope esse custo político com pouca possibilidade de ganhos em retorno?
Atualmente, Bashir está preso, com um governo interino prometendo durar até dois anos e organizar “eleições livres”. O líder do governo interino é o general Awad Mohamed Ahmed Ibn Auf, que também é algo de sanções pelos EUA e acusações de envolvimento em atrocidades ao sul. Finalmente, existe a possibilidade nem um pouco remota de que Bashir tenha sido derrubado pelos seus antigos pilares do poder. “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Exatamente o que ocorreu recentemente no Zimbábue, quando o ego de Robert Mugabe começou a atrapalhar os planos de sua sucessão e os investimentos chineses no país.
Com a benção de Pequim, os militares e o então vice-presidente, Emmerson Mnangagwa, deram um chega pra lá em Mugabe. Bashir estava no poder por trinta anos. Procurado pelo TPI, tinha pouquíssimo prestígio internacional. Internamente, foram trinta anos de expurgos, guerras civis, corrupção, desabastecimento, inflação, tudo diretamente ligado ao ditador, em um regime totalitário unipartidário. Mesmo com prospectos de melhoras e interesses diversos mirando no Sudão, Bashir não era nem a imagem e nem a pessoa de um processo de renovação. Pode ser que sua retirada apenas possibilite que tudo caminhe como previsto.
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