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O atual Oriente Médio é marcado pela disputa política, econômica e cultural entre o Irã e a Arábia Saudita. O clichê vai dizer que essa é uma disputa de séculos, antiquíssima, insolucionável, entre persas e árabes, entre sunitas e xiitas. Claro que fatores históricos e culturais fazem parte disso, mas essa disputa por influência entre esses dois Estados é mais recente e foi consolidada quando um terceiro ator foi eliminado do posto de potência regional trinta anos atrás, com a Guerra do Golfo contra o Iraque de Saddam Hussein.
A Guerra do Golfo acaba restrita ao imaginário popular por ter sido o primeiro conflito transmitido ao vivo pela televisão, especialmente as imagens dos ataques aéreos, a “guerra de videogame”. Saddam se tornou o modelo para vilões de Hollywood, ou então o próprio Saddam era satirizado, como nos filmes Top Gang ou em South Park. O conflito também é menosprezado por ter sido relativamente breve e “fácil” para as tropas da coalizão liderada pelos EUA, um massacre aéreo que expulsou os iraquianos do Kuwait.
Isso é subestimar a importância histórica e contemporânea da Guerra do Golfo. Saddam chegou ao poder em 1979. Ele era vice-presidente do Iraque e derrubou o titular do cargo, Ahmed Hassan al-Bakr. Vindo de uma linhagem ideológica nacionalista e desenvolvimentista, Saddam queria desenvolver a ideia de que o Iraque era uma potência, tanto moderna quanto histórica. Para isso, investiu pesadamente na compra e desenvolvimento de armamentos, e também na arqueologia, restaurando o patrimônio histórico da antiga Mesopotâmia e tentando criar uma conexão entre a Babilônia e o Iraque moderno.
O Iraque substituiu a vizinha Síria e o Egito como a principal potência nacionalista árabe como uma república secular. A Arábia Saudita, na década de 1970, estava longe de ser a potência regional que é hoje, e sua influência era muito maior em termos políticos e culturais, perante outras monarquias absolutistas da região e por ser o país guardião das mesquitas sagradas. Naquele momento, os sauditas eram os protagonistas das monarquias islâmicas e o Iraque era a referência nacionalista e secular.
1979
Outro ator era o Irã, uma monarquia próxima do Ocidente no país de maior população xiita do mundo. No mesmo ano da ascensão de Saddam, em 1979, ocorreu a Revolução Iraniana, que instaurou um governo desenvolvimentista e religioso xiita no país vizinho. Saddam Hussein ordenou a invasão do Irã, alegando que os iranianos desejavam exportar sua revolução com o apoio da maioria xiita iraquiana. O que Saddam realmente almejava era anexar territórios na costa do golfo Pérsico, que permitiriam ao Iraque ter um terminal portuário para exportar diretamente seu petróleo, algo economicamente mais vantajoso.
Durante a guerra Irã-Iraque, Saddam recebeu apoio dos EUA, com a famosa, e futuramente irônica, imagem de Saddam recebendo Donald Rumsfeld, que seria secretário de Defesa dos Estados Unidos durante a Guerra do Iraque em 2003, que viu Saddam ser afastado do poder e posteriormente executado. Também contou com o apoio de países europeus e, principalmente, das monarquias árabes do golfo, como o Kuwait, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.
Os países do golfo desejavam enfraquecer o Irã e impedir que revoluções que derrubassem monarquias se tornassem “moda” na região. Ao todo, o Iraque recebeu mais de 70 bilhões de dólares em empréstimos para lutar na guerra, que durou oito anos e deixou um milhão de mortos, com também episódios de limpeza étnica, crimes de guerra e o uso de armas químicas. O conflito, as mortes e o dinheiro não serviram para nada. Nem Iraque e nem Irã conseguiram avanços na guerra de atrito. O Iraque saiu da guerra insatisfeito e endividado.
De candidato a potência regional e uma das maiores forças armadas do mundo, o país estava falido e parcialmente destruído, com mais de 200 bilhões de dólares em danos. Saddam Hussein afirmou que não pagaria a dívida com os países árabes, alegando que o Iraque lutou a guerra em nome de todos os árabes. Os sauditas não aceitaram a ameaça de calote. Saddam também acusou o Kuwait de produzir petróleo demais, violando as regras da Opep e causando uma queda no preço, piorando a situação econômica iraquiana.
Dívida de guerra
A tensão entre os países árabes aumentou e Saddam voltou a argumentar que o Kuwait seria um pedaço histórico do Iraque, que teria sido uma criação britânica, ameaçando uma invasão para “restaurar” o Kuwait e conseguir o terminal portuário desejado na guerra anterior, o que melhoraria a economia iraquiana afetada pela guerra. Saddam estava confiante numa vitória pois o Kuwait é um país pequeno e possuía poucas capacidades militares, e ele acreditava que as potências não interfeririam, devido ao processo de dissolução da URSS e as revoluções na Europa Oriental.
A invasão finalmente aconteceu em agosto de 1990 e os iraquianos foram vitoriosos em apenas dois dias. Ao contrário do que Saddam acreditava, entretanto, a comunidade internacional rapidamente se mobilizou para condenar a invasão como uma guerra de agressão e impor sanções contra o Iraque. Após tentativas fracassadas de negociação, o Conselho de Segurança da ONU, em novembro, exigiu a retirada iraquiana e autorizou o uso de quaisquer meios necessários para forçar essa retirada.
O governo dos EUA, então, formou uma coalizão para uma eventual intervenção, incluindo o apoio da Síria, cujo ditador, Hafez Assad, era rival de Saddam, e, extraoficialmente, os EUA fez concessões ao Irã. Em troca do apoio do Irã à intervenção liderada pelos EUA, o governo dos EUA prometeu ao governo iraniano acabar com a oposição aos empréstimos do Banco Mundial aos iranianos. O medo em Washington era que os iranianos aproveitassem o conflito e tornassem a guerra ainda maior.
As ações dos EUA eram guiadas especialmente pelo pedido de ajuda de seus aliados sauditas, que temiam uma invasão de seu território pelo Iraque. Além disso, EUA e sauditas queriam evitar que o Iraque controlasse mais da metade do comércio mundial de petróleo. Nesse sentido, é possível descrever a Guerra do Golfo principalmente como uma guerra entre Iraque e Arábia Saudita, pois, embora a maioria das forças militares da coalizão fossem dos EUA, a maior parte dos custos da guerra foi bancada pelos sauditas, que foram legalmente responsáveis pelo pedido de intervenção.
No dia 16 de janeiro de 1991, a guerra do Golfo começou com uma intensa campanha de bombardeio aéreo contra alvos iraquianos, tanto no Iraque quanto no Kuwait. Foram 42 dias de ataques aéreos, voltados especialmente para destruir as defesas antiaéreas iraquianas e sua força aérea, além da infraestrutura do país. Após alguns dias com escaramuças terrestres, as forças da coalizão iniciaram uma ofensiva no dia 24 de fevereiro, para forçar uma retirada iraquiana do Kuwait.
Cem horas depois, foi declarado um cessar-fogo, com todas as tropas iraquianas expulsas do Kuwait. As forças do Iraque sofreram muito mais baixas do que as da coalizão. Além disso, dezenas de milhares de civis iraquianos morreram em consequência indireta do conflito, como a destruição de hospitais. As forças da coalizão não invadiram propriamente o Iraque, acreditando que seria muito difícil derrubar Saddam Hussein, que continuou no poder até a invasão dos EUA, em 2003. De qualquer maneira, a “guerra de videogame" fez o Iraque deixar de ser uma potência regional, abrindo caminho para o cenário que existe hoje, de uma disputa direta entre sauditas e iranianos.