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Em meio à enxurrada de propaganda que assola as redes sociais em tempos de guerra, uma potencial boa notícia veio nas primeiras horas da última segunda-feira. Mevlüt Çavusoglu, Ministro de Relações Exteriores da Turquia, anunciou que, na próxima quinta-feira, dia dez de março, vai receber seus colegas da Ucrânia e da Rússia, Dmitro Kuleba e Serguei Lavrov, respectivamente. Será o primeiro encontro de alto escalão desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, e o primeiro encontro pessoal entre os dois diplomatas. Mais do que uma possibilidade de encerrar o conflito, as negociações serão encaradas por Moscou como uma maneira de recuperar parte do prestígio perdido.
Nem o mais confiante e nacionalista russo pode negar os reveses que a Rússia sofreu até agora. O que começou como um ataque de decapitação rumo à capital Kiev e prometia ser uma guerra relâmpago tornou-se uma guerra de ocupação marcada por ataques ucranianos contra as linhas russas de suprimentos. Das forças russas reunidas na fronteira, apenas um terço foi utilizada nos primeiros dias, esperando serem recebidas como “libertadores”, especialmente pela população russófona ucraniana. Na realidade, resistência e protestos contra os soldados russos. Mesmo uma cidade símbolo da comunidade russa na Ucrânia como Kharkov teve que ser cercada e bombardeada, sem portas abertas.
A falta de combatividade de parte das tropas russas, não acostumadas a ver os ucranianos como um inimigo, precisou ser contornada com a convocação de tropas chechenas. Putin chegou a fazer um discurso sobre o caráter multinacional da Federação Russa. A tentativa de um avanço rápido, mais os ataques contra as linhas de abastecimento russas, fez com que uma grande quantidade de equipamento fosse abandonado e capturado pelos ucranianos. Desde sofisticados, e caros, sistemas antiaéreos Pantsir-S1, até dezenas de carros de combate, o popular “tanque”, reforçando a guerra de propaganda com memes ucranianos sobre fazendeiros rebocando tanques pelas estradas. Guerra de propaganda, inclusive, na qual a Ucrânia tem conseguido muitos sucessos.
Reveses russos
A percepção de muitos analistas militares e de política internacional é de que os reveses russos foram causados por dois motivos principais. O primeiro deles é que a Rússia teria subestimado como seria a resistência ucraniana, seja por esperar a recepção como “libertadores” por parte da população, seja por não considerar os avanços militares ucranianos desde 2014, com convênios de treinamento com países como EUA, Canadá e Reino Unido, além de receberem novos armamentos. Esse desprezo russo às capacidades ucranianas parcialmente explicaria o que aparenta ser um planejamento desastrado da ofensiva, não repetindo a velocidade e a intensidade vista, por exemplo, nas ações russas na Síria.
Por outro lado, também é possível especular que a intensidade do ataque russo foi contida intencionalmente, buscando evitar uma maior destruição e a repercussão negativa consequente. Esse foi o discurso de Putin, inclusive. Claro, essa abordagem fracassou e as cenas de destruição já estão circulando por dias nas redes sociais, mas existem alguns indícios para essa especulação. Por exemplo, até o último final de semana, a Rússia ainda não tinha utilizado seus meios aéreos estratégicos, como os bombardeiros Tupolev Tu-22 e os caça-bombardeiro Sukhoi Su-34, que entraram em serviço em 2014. Em questão de dias, quatro exemplares do último modelo foram abatidos pelas defesas ucranianas.
Outro motivo que explica os reveses russos é a velocidade e amplitude da reação européia e dos EUA, com pesadas sanções contra a economia russa, o constante envio de armamento e materiais bélicos para a Ucrânia, demonstrações populares de apoio e o fechamento dos estreitos de Bósforo e Dardanelos pela Turquia. Putin dificilmente estava esperando por esse efeito dominó na reação internacional. Nem mesmo os ucranianos contavam com isso, já que, por exemplo, seu presidente, Volodymyr Zelensky, mantinha desde o início que seria uma guerra que os ucranianos que teriam que travar.
Pouco depois do anúncio das conversas mediadas pela Turquia, Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin, apresentou os termos russos em uma entrevista à agência Reuters. Afirmou que, segundo o governo russo, as ações militares seriam encerradas “em um instante” se o governo ucraniano “cessar toda atividade militar”, reconhecer a Crimeia como território russo, a independência dos oblasts separatistas de Luhansk e de Donetsk e, finalmente, promova uma alteração da sua constituição que rejeite a “entrada em qualquer bloco”. Não houve menção explícita à “desmilitarização” ou “desnazificação” utilizadas como justificativa por Putin em seu discurso anunciando a invasão da Ucrânia.
Termos e negociação
Ainda segundo Peskov, a delegação russa já informou os termos aos ucranianos na semana passada, quando das reuniões em Gomel, em Belarus. Ele também concluiu afirmando que "de resto, a Ucrânia é um Estado independente que viverá como quiser, sob as condições de neutralidade". Sobre os termos, é interessante notar duas coisas. Primeiro, reconhecer a independência dos oblasts separatistas é, na prática, reconhecer a anexação do território pela Rússia. Como “independentes”, as duas repúblicas solicitariam entrada na Federação Russa, que seria aprovada num referendo. Processo similar ocorreu na própria Crimeia, que declarou independência formal em 2014 antes de solicitar sua admissão na Federação Russa.
Segundo, vetar a “entrada em qualquer bloco” significa tanto União Europeia quanto OTAN, mas também significaria organizações como a União Econômica Eurasiana ou a Comunidade dos Estados Independentes, que a Ucrânia integrou até 2018. Ou seja, seria um empecilho para uma maior aproximação entre a Ucrânia e a Rússia, quando, e se, superados os traumas do conflito atual. Quem se tornaria o principal parceiro econômico do país então, senão a Rússia ou a UE? Ou a China ou os EUA. E, muito provavelmente, um acordo final também discutirá a eventual devolução dos equipamentos capturados citados, justificando a “pressa” que causa o abandono dos equipamentos.
Além do significado dos termos solicitados pela Rússia, existe também o significado das conversas em si nesse momento. Cada dia de guerra é uma tragédia, em todo e qualquer parâmetro. Para a Rússia, cada dia de guerra custa bilhões de dólares e cada vitória militar ucraniana divulgada nas redes sociais significa um golpe no prestígio militar russo. A Ucrânia dificilmente aceitará os termos propostos pela Rússia. Isso será utilizado pelo governo Putin como “justificativa” para uma ofensiva renovada. Uma enorme coluna blindada está perto de Kiev, mais o possível uso dos citados meios aéreos mais destrutivos.
A consequente devastação seria, então, “culpa” do governo ucraniano, por não ter aceitado os termos. E isso certamente será colocado na mesa de negociações, como uma arma na cabeça de alguém. Isso não é exatamente uma surpresa, já que a força foi justamente o meio escolhido por Moscou para impor e garantir seus interesses em relação à Ucrânia. Resta ver como será a reação turca, como mediadora das conversas, se, em busca de “evitar uma tragédia maior” vai incentivar o aceite dos termos pela Ucrânia, ou se, em nome de um eventual equilíbrio, fará uma contraproposta. O ponto é, se a guerra não acabar com as conversas da próxima quinta-feira, aguardemos uma retomada de ofensiva pela Rússia.