2020 está terminando e não deixará saudades em ninguém. Uma pandemia que deixou mais de um milhão e meio de mortos até o momento, causou uma profunda depressão econômica e afetou os hábitos e relações pessoais de quase toda a população mundial. Para o reconhecimento internacional do Estado de Israel, entretanto, foi um ano positivo, além de plantar sementes para frutos futuros.
No curso do ano, cinco Estados nacionais reconheceram Israel e estabeleceram relações diplomáticas com o país. Em setembro, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein; em outubro, o Sudão; finalmente, em dezembro, o Marrocos e o Butão. Além dos países citados, o Kovoso também formalizou relações com Israel em setembro. Nesse caso, importante lembrar que o Kosovo não possui amplo reconhecimento internacional e não é um Estado-membro da Organização das Nações Unidas.
Israel não estabelecia tantas relações diplomáticas em um só ano desde o início dos anos 1990. Naquele contexto, após assinar os acordos de Oslo normalizando suas relações com a Palestina, diversos Estados normalizaram suas relações com Israel entre 1992 e 1995. A dissolução da União Soviética também colaborou para esses números inchados, já que, onde antes havia uma representação diplomática, agora existiam quinze.
Todas essas normalizações de relações diplomáticas tiveram participação do governo de Donald Trump como mediador. Os objetivos de Trump eram duplos. Primeiro, aglutinar os aliados dos EUA em uma frente consolidada contra o Irã. O raciocínio é o de que, se os EUA, Israel, os sauditas e outras monarquias do Golfo Pérsico possuem o Irã como inimigo, então, esses países deveriam ter boas relações entre si.
O segundo motivo era agradar seu eleitorado mais conservador, muitos deles de igrejas evangélicas que adotam uma visão milenarista, que associa o Estado de Israel com profecias bíblicas e o Apocalipse. Essa abordagem tem se difundido no Brasil, vide o crescente número de bandeiras israelenses em algumas manifestações populares. No caso de Trump, não foi suficiente para uma vitória eleitoral.
Interesses e ganhos
Provavelmente, o principal país da lista é os Emirados Árabes Unidos, por ser uma potência regional, um país árabe e presente em diversos conflitos no Oriente Médio. Por isso, esse estabelecimento de relações foi analisado em uma coluna dedicada, publicada em agosto. Já a normalização de relações com o Sudão possui aspectos interessantes. Ela vem depois da revolução que derrubou o ditador Omar al-Bashir, que tinha um pilar religioso em seu governo e em sua ideologia. Sua saída abriu caminho para esse estabelecimento.
Junto com ela veio a retirada do Sudão da lista de “Estados que patrocinam terrorismo”, de Washington. Essa retirada incluiu o pagamento, pelo Sudão, de trezentos milhões de dólares em indenizações para famílias vítimas dos ataques contra as embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia, em 1998. A quantia não parece grande pensando no PIB dos EUA, ou até mesmo no PIB brasileiro, mas equivale a 1% do PIB sudanês. É como se o Brasil tivesse que fazer um pagamento de 13 bilhões de dólares.
É possível que tenha ocorrido uma negociação triangular. O Sudão paga a indenização, os EUA retiram o país da lista e mediam as conversas entre sudaneses e israelenses. Israel obtém o reconhecimento sudanês e, num prazo mais dilatado, faz investimentos ou “auxílios humanitários” no Sudão, amenizando o impacto da indenização. E é impossível não citar o simbolismo, e importância, de Israel obter o reconhecimento sudanês, já que foi na capital do país, Cartum, que foi assinada a Resolução da Liga Árabe de 1967.
O documento ficou conhecido como a “Resolução dos Três Nãos”, pois negava a possibilidade de paz, de reconhecimento e de negociações com Israel. Mais de cinquenta anos depois, a situação mudou bastante. Com o Kosovo, o tópico principal é certamente o fato de que a maioria dos albaneses-kosovares é de muçulmanos, o que contribuiu para a imagem que o governo israelense busca transmitir de paz entre as religiões.
Se a normalização com Kosovo é quase simbólica, o mesmo pode ser dito de estabelecer relações com o Butão. O acordo foi assinado pelos respectivos embaixadores na Índia, Ron Malka e Vetsop Namgyel, no último dia 12 de dezembro. O Butão é um país quase isolacionista, possui relações oficiais com menos de cem países, a maioria deles sem embaixada em território butanês. É o caso do Brasil, que acumula as funções com a representação na Índia, assim como fará Israel.
Nem a questão religiosa pode ser citada, já que o Butão é um país de maioria budista, sem relação com as religiões abraâmicas do Oriente Médio. O mais interessante dessa normalização, para Israel, é que o Butão pode ser uma ponte para o estabelecimento de relações com Bangladesh, país com a quarta maior população muçulmana do mundo e uma das economias com maior desenvolvimento da última década, uma média anual de 7% de crescimento do PIB. Ou seja, possibilidades econômicas e comerciais para Israel, e Butão e Bangladesh possuem profundas e históricas relações.
Marrocos sai ganhando
Finalmente, o Marrocos é um caso de destaque. País da Liga Árabe, sem relações oficiais, entretanto, com profundas e históricas relações com os judeus. E também com o Estado de Israel, já que o Marrocos forneceu para a inteligência israelense os planos egípcios antes da Guerra dos Seis Dias, além de Israel ter “comprado” o direito dos judeus marroquinos de se mudarem para Israel. Principalmente, foi o Marrocos que saiu ganhando.
Tal como o Chipre, tema da última coluna, que usou uma crise terceira para avançar a sua agenda internacional, o Marrocos colocou um preço no seu acordo com Israel. E conseguiu. O governo Trump reconheceu a soberania marroquina sobre o território do Saara Ocidental, uma das últimas colônias do imperialismo europeu e um dos mais evidentes casos de debate sobre autodeterminação dos povos. O histórico do conflito é mais profundo que isso, claro, e merece ser tema de uma coluna própria. O fato é que, numa disputa territorial, o governo marroquino conseguiu o apoio da maior potência do planeta.
Importante também frisar que, logo após o anúncio do acordo, o gabinete do monarca marroquino lançou uma nota para a imprensa. A nota falava de uma conversa telefônica entre o rei Mohammed VI com Mahmoud Abbas, presidente palestino, e reafirmava o compromisso com os locais de herança cultural islâmica em Jerusalém e com os palestinos. Um recado bastante claro, especialmente considerando que a maioria dos marroquinos simpatiza com a Palestina.
Pensando nos países que nunca estabeleceram relações com Israel, os principais destaques são Líbano, Iraque, Argélia, Tunísia, Indonésia e Paquistão. Provavelmente, o próximo país nesse processo de reconhecimento será o sultanato de Omã. Mais um passo preliminar rumo ao grande objetivo. A formalização das relações com o país que é, hoje, a principal potência árabe, a Arábia Saudita. Isso consolida a frente anti-Irã, mas, talvez, quem pague o preço seja a Palestina, perdendo seus aliados um por um.
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