Nas primeiras horas deste dia 19 de abril, Israel atacou o solo iraniano, em retaliação ao ataque anterior contra seu território. O ataque de dias atrás, por sua vez, foi também uma retaliação pelo ataque israelense ao consulado iraniano em Damasco, em uma cadeia de eventos que remete aos anos 1980. Na maioria das vezes, o foco da imprensa nacional é o conflito entre os dois “protagonistas”, Israel e Irã, mas existem outras ramificações tão importantes quanto, como no sul do Cáucaso.
Ainda não há muito o que se comentar sobre o ataque israelense de 19 de abril, já que as informações chegam enquanto a coluna é escrita. Talvez o principal aspecto seja o de que o chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, Rafael Grossi, afirmou que não houve danos a instalações nucleares iranianas, já que uma das primeiras especulações foi a de que o ataque israelense mirava o complexo nuclear iraniano em Isfahan, onde foram registradas explosões.
Armênia e seus vizinhos
O leitor certamente conhece a Armênia, país de origem de expressiva comunidade brasileira, embora não tão numerosa. Os armênios se orgulham de serem “a primeira nação cristã do mundo”, pelo simbolismo do batismo do rei Tiridates III em 301, que proclamou a Igreja Apostólica Armênia como a religião oficial do reino. Isso ocorreu doze anos antes do Edito de Milão, que instalou a tolerância ao cristianismo em Roma. Até hoje a igreja possui papel importantíssimo na vida cultural e social dos armênios.
O atual Estado armênio, fundado em 1991, após a dissolução da União Soviética, nasceu em guerra, contra o vizinho Azerbaijão, também uma ex-república soviética. Tais conflitos já foram abordados em profusão aqui no nosso espaço de política internacional e, para manter a concisão deste texto, não vamos fazer uma recapitulação aprofundada. O Azerbaijão é um profundo aliado da Turquia, ao ponto da existência do slogan “Uma Nação, dois Estados”, já que ambas as populações são, em maioria, turcas.
Essa aliança significa que a Armênia está espremida entre dois aliados, unidos também na perspectiva comum de verem os armênios como inimigos. O Azerbaijão usa os armênios na figura de inimigos nacionais, os supostos responsáveis por todos os males do país. Já a Turquia é o Estado sucessor dos otomanos, e foram os nacionalistas turcos que cometeram um dos mais horrendos crimes do século XX, o Genocídio Armênio de 1915, matando e expulsando de suas terras mais de um milhão de pessoas.
As relações entre Armênia e seus vizinhos túrquicos costumam ser o principal foco da cobertura internacional. A dinâmica regional, entretanto, é muito mais complexa. A Armênia é um país sem acesso ao mar, logo, precisa de boas relações com seus vizinhos. Ao leste está o inimigo Azerbaijão e, ao oeste, a Turquia, e ambas as fronteiras são fechadas. Ao norte, as relações com a pequena Geórgia são de altos e baixos históricos. Ao sul está a única potência regional com quem a Armênia tem boas relações, o Irã.
Relações com o Irã
Por séculos, as histórias de Armênia e Pérsia foram bastante interligadas e de influências mútuas. O legado dessa História pode ser visto em cidades e vilas iranianas onde estão monumentos e igrejas armênias preservadas, enquanto o Azerbaijão e a Turquia destroem esses mesmos tipos de construções. Na última década, o Irã tornou-se o mais importante ponto de entrada de produtos importados no mercado armênio, além da intensificação do comércio entre os dois países.
Bananas do Equador? Café do Brasil e da Colômbia? O mais famoso refrigerante do mundo? Tudo isso entra na Armênia via Irã, com um intenso fluxo diário de caminhões. Também existe cooperação técnica em diversas outras áreas, inclusive na militar, feita de maneira discreta, obviamente. A cooperação militar se dá pelo fato de que o Azerbaijão pretende invadir o sul da Armênia e tomar o Corredor de Zangezur. Oficialmente, para unir o principal território do país ao seu enclave de Nakhchivan.
A expansão azerbaijana, entretanto, esconde um propósito maior: o pan-turquismo e a conexão de todos os países túrquicos. Isso está simbolizado no fato de que foi em Nakhchivan que foi fundado o Conselho Túrquico, que une cinco países. Ali também é a origem do clã Aliyev, que governa o Azerbaijão de forma absoluta desde 1993. O Corredor de Zangezur representa uma mudança nas fronteiras do Irã, algo já dito que é inadmissível pelo regime de Teerã, que deixou claro que usaria a força para impedir isso.
Israel e a ditadura do Azerbaijão
Onde Israel entra nisso? Israel é um dos principais aliados do Azerbaijão, em uma relação que muito antecede a parceria entre Armênia e Irã. O Azerbaijão, de maioria xiita, foi um dos primeiros países muçulmanos a reconhecer Israel, e existe uma comunidade judaica no Azerbaijão. Principalmente, a ditadura Aliyev fornece petróleo para os israelenses, em troca de armas e inteligência. De fato, Israel é o principal fornecedor de armamento para o Azerbaijão nas últimas décadas.
Antes da guerra de 2020 e da limpeza étnica cometida pelo Azerbaijão em 2023 na região de Nagorno-Karabakh, foi constante o fluxo de aviões de carga entre Israel e Azerbaijão. Outro fator de união entre os dois países é justamente o Irã, hoje maior inimigo de Israel. A partir do Azerbaijão, Israel coleta inteligência e realiza operações especiais contra o Irã. As relações entre Azerbaijão e Irã são de desconfiança mútua também pela existência da expressiva minoria azerbaijana em solo iraniano.
O Azerbaijão teme que o Irã use essa minoria para influenciar seus rumos políticos, enquanto o Irã teme o inverso, que o Azerbaijão coloque essa minoria contra o regime de Teerã. Essa relação é complexa pois a própria definição de um azerbaijano é complicada. Em termos objetivos, trata-se de um povo túrquico que foi persianizado na Idade Média, incluindo a adoção do xiismo. Para alguns antropólogos, isso faz dos azerbaijanos um povo próprio. Para outros, entretanto, eles são turcos com uma cultura ligeiramente diferente.
História e guerra
Também existe a discussão histórica sobre o próprio nome Azerbaijão, em termos similares ao uso do nome “Macedônia” pela atual Macedônia do Norte, sem relação com a Macedônia histórica grega. O nome “Azerbaijão” é historicamente persa e ao sul do atual país, e foi adotado pelas autoridades do Império Russo como uma maneira de reivindicar mais território ao sul, durante a expansão russa no século XIX. Ou seja, batizaram uma região de “Azerbaijão” para justificar uma invasão do real Azerbaijão, ao sul.
Em outros termos, o próprio nome do atual país Azerbaijão pode ser indevido, parte da colcha de retalhos de culturas, povos e impérios que se encontra no Cáucaso, uma encruzilhada de civilizações. O recrudescimento do conflito indireto entre Irã e Israel, pode, então, se refletir não só no esfacelado Iraque ou no Mar Vermelho, mas também no sul do Cáucaso, com uma eventual retomada da guerra pelo Azerbaijão, aproveitando armamentos israelenses e a presença desse país em seu território visando o Irã.
O sul do Cáucaso também envolve diversos outros interesses estrangeiros. O da Rússia é o mais óbvio, com presença militar na Armênia e parceria econômica do Azerbaijão. A sensação na sociedade armênia, inclusive, é de que a Rússia de Putin os traiu, não cumprindo com os compromissos assinados para retaliar o governo Pashinyan por se aproximar do chamado Ocidente. Parte desse distanciamento da Rússia que fez a Armênia aprofundar sua relação com o Irã.
Caso os iranianos respondam e intervenham em uma eventual agressão do Azerbaijão, será também em nome de seus interesses, claro. E nada do que foi exposto e analisado apaga que o Irã é uma ditadura religiosa. Não se pode perder de vista, entretanto, que o povo armênio, vítima de um bárbaro genocídio e de uma limpeza étnica ainda em 2023, hoje depende da parceria com seu vizinho Irã para sua integridade territorial e sua própria existência em suas terras ancestrais.