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Muito se fala das eleições presidenciais nos EUA em toda a imprensa brasileira. Isso inclui esse espaço, claro, e as razões são óbvias, já que se trata do próximo presidente da maior potência econômica e militar do planeta. As eleições de 2020 ainda possuem um peso simbólico, já que celebram o centenário da 19ª emenda da constituição dos EUA, que consagrou o voto feminino no país.
Alguns estados do país já tinham adotado o voto feminino, especialmente no oeste, onde as mulheres já tinham maior autonomia econômica e social. O primeiro estado foi o Colorado, em 1893, mas tais legislações tinham apenas efeito local. A primeira proposta nacional para um voto feminino universal foi feita em 1878, mas apenas em maio de 1919 ela foi aprovada na Câmara. No mês seguinte, aprovada no Senado e encaminhada para a ratificação pelos estados. A emenda foi consagrada em 26 de agosto de 1920.
Décadas de luta
Claro que esse processo todo é extremamente simplificado em dois parágrafos e não pode cair numa romantização boba, especialmente por dois fatores. Primeiro, as décadas de protestos, de movimentos organizados e da articulação pelas mulheres que desejavam votar. A Associação Nacional Americana para o Sufrágio Feminino, por exemplo, foi formada em 1890, levando trinta anos para atingir seu objetivo. A associação, por sua vez, foi uma fusão de duas organizações ainda mais antigas.
Muitas sufragistas foram presas injustamente e também torturadas, longe de ter sido um processo amistoso e “natural”, sem pressões. O movimento ganhou ainda mais força com a Grande Guerra, já que centenas de mulheres contribuíram ao esforço de guerra nos EUA, como enfermeiras, ocupando cargos na administração e também postos fabris, embora em escala menor do que viria a ocorrer na Segunda Guerra Mundial. Esse cenário criou uma contradição que foi bastante explorada.
Afinal, uma mulher podia contribuir no esforço de guerra mas não poderia ter plenos direitos como cidadã? Outro aspecto que precisa ser lembrado é que a emenda, assim como as outras leis eleitorais, ficava sujeita às políticas de segregação adotada por cada estado. Isso quer dizer que, para as cinco milhões de mulheres adultas negras que viviam nos EUA em 1920, além de diversas outras comunidades, como indígenas, a nova emenda era uma letra fria, sem valor prático.
Na prática, o sufrágio universal nas eleições presidenciais dos EUA começa apenas em 1968, quando Nixon é eleito para seu primeiro mandato. Em termos históricos, ontem, quando muitos dos leitores já eram nascidos. O eleitorado dos EUA foi ampliado na eleição seguinte, após a idade mínima do voto ter sido diminuída de 21 para 18 anos de idade. De 1968 até hoje, foram treze eleições presidenciais no país, com um placar de oito a cinco para os republicanos.
E no Brasil?
E a situação no Brasil não é muito diferente. Na verdade, é até pior. Durante a monarquia, o voto era censitário, com uma parcela ínfima podendo votar e uma mais ínfima ainda podia se candidatar. Nos estertores da monarquia, foi proibido o voto dos analfabetos. Na prática, a ideia era proibir o voto dos negros, ex-escravizados e progressivamente em liberdade. Isso foi herdado pela república, em quase todas suas encarnações.
O voto feminino, nacionalmente, é incorporado na constituição de 1934. Antes dela ocorreram episódios localizados de mulheres eleitoras e eleitas. A constituinte que elaborou a carta tinha uma mulher, Carlota Pereira de Queirós. Três anos depois, entretanto, há o golpe do Estado Novo, com uma ditadura que contava com uma nova constituição, a de 1937, escrita por Francisco Campos, o “Chico Ciência”, talvez o principal intelectual fascista brasileiro. Décadas depois, ele também redigiu o AI-1, em 1964.
Devido ao golpe de Vargas, as mulheres brasileiras votaram para presidente apenas em 1945. Ainda assim, dado o banimento do voto dos analfabetos, a participação eleitoral era uma fração. Dos cerca de 45 milhões de brasileiros, apenas seis votaram. Dutra foi eleito com o voto de 6,6% para governar sobre todos. Isso só viria a mudar com a Constituição de 1988, que declara que o voto era um direito inclusive aos analfabetos e aos praças.
Se a primeira eleição presidencial com sufrágio universal nos EUA foi em 1968, a primeira do Brasil foi em 1989. Em termos históricos, a noite de ontem, já que até esse colunista era nascido. No segundo turno, votaram 66 milhões de brasileiros e Fernando Collor foi eleito com o voto de um quarto de toda a população. Se preferir, 40% do eleitorado de 82 milhões de cidadãos, descontada as parcelas da população fora da idade eleitoral.
Hoje, a população adulta analfabeta do Brasil é de cerca de 11 milhões de pessoas, 6,8% da população. Em 1960, essa taxa era de 39,6%. Em 1990, de 25%. Será que é uma coincidência que o analfabetismo diminuiu de maneira mais acelerada após essa população poder exercer sua cidadania de maneira mais ampla? O propósito de uma democracia representativa não é justamente que as pessoas sejam representadas, e não apenas guiadas por um grupo seleto de “iluminados”?
Quando se deu voz e participação para essas pessoas, o malefício do analfabetismo caiu de maneira mais rápida nos trinta anos seguintes do que nos trinta anos anteriores. E com uma população maior, deve-se lembrar. O centenário do voto feminino nos EUA serve como um lembrete de que milhões de cidadãos mal eram ouvidos até praticamente ontem, lá e cá. E que, se há um discurso sobre os benefícios da democracia representativa, ele deve ser acompanhado da ampliação constante da cidadania e do seu exercício. O resultado é uma sociedade mais harmônica, mais produtiva e, em bom português, melhor.